A cura do kambô
A cura do kambô
Sonia de Valença Menezes e Ni-í (*)
Palestra apresentada dia 16 de março de 2005 no Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo. Organização Léo Artése/Associação Lua Cheia – Pax, São Paulo, 13 a 20 de março de 2005 (**).
Soninha:
Estamos aqui esta tarde falando em nome da AKAC, que é a Associação Katukina do Campinas, situada a 120 km de Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá. O Juruá fica na floresta Amazônica, mas seu território pertence ao estado do Acre.
O Ni-í é cacique da etnia Katukina, que esta dividida em quatro aldeias: Campinas, Martins, Samaúma e Bananeira. Este povo é o zelador deste remédio, que hoje em dia está sendo bastante divulgado. Muita coisa está acontecendo envolvendo o nome do kambô, por exemplo, patentes. Embora todas as etnias que vivam por ali tenham conhecimento deste remédio, os katukinas são considerados seus zeladores, pois eles o utilizam muito. A vida, a saúde e a alegria deles é este remédio, que é extraído de uma rã, cujo nome científico é Phyllomedusa bicolor. O kambô é um remédio super potente que vem ajudando muitas pessoas em seus desequilíbrios crônicos ou patologias, bem como em suas desarmonias com o corpo e com a mente.
Ni-í sempre lutou para fazer o kambô como ele é na aldeia. As curas começaram a acontecer e muita gente ficou de olho nele, muita outras pessoas começaram a aplicar o kambô. O Ni-í ficou zelando e falando para todos usarem o kambô da maneira que é usado na aldeia, com a orientação dos anciões, para assim ter a chave deste remédio, de forma que ele possa levar a felicidade a todo aquele que procurar.
A AKAC trata de todos os interesses dos Katukina, organiza escolas e muitas outras coisas. Eles precisavam de uma associação para defender seus direitos. Apareceram outras associações querendo se ligar a eles, mas eles resolveram montar sua própria – ainda que ela tenha demorado dez anos para ir para o papel. Mas agora a associação já está funcionando e temos fé de que ela continue por bastante tempo.
Ni-í:
Boa tarde para todos. Estou muito feliz por estar aqui. Aqui apenas eu sou índio do Acre, mas estou me sentindo muito feliz, como um parente de todos nós.
Fui convidado para participar do Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo aqui e vim de longe, pois o Acre é muito distante de São Paulo. Eu vim apresentar a nossa medicina, que é o kambô. Nós a utilizamos há muito tempo. Ela é o remédio que nós usamos para vários tipos de doença. Nós não precisamos ir à farmácia. As nossas crianças, a partir de um ano de idade, já começam a tomar o kambô para se proteger das doenças. As mulheres grávidas podem tomar também, porque assim as crianças nascem com maior resistência às doenças.
Vim aqui para contribuir com quem está precisando de cura, da medicina da floresta, do povo amazônico. Estou falando em nome do povo katukina. O nome da minha associação é Associação Katukina do Campinas. Ela fica no município de Cruzeiro do Sul, estado do Acre, na BR 364, km 92. Sou representante do meu povo, e estou aqui até dia 30 deste mês. Só vim fazer uma visita. É a segunda vez que venho para São Paulo.
Acredito que cada um de nós precisa desta cura, que é da floresta, que é sagrada. Estou aqui curado pela floresta. Eu nunca tinha pensado em vir aqui, porque é muito distante e muito difícil de chegar. Só poderia vir até aqui através do kambô mesmo.
Soninha:
Muita gente já sabe um pouquinho do kambô, então fica um pouco difícil falar. Como disse o nosso companheiro, os índios não falam muito. O kambô é um remédio extraído de uma rã da Amazônia. Nós não divulgamos muito o kambô. Geralmente quem toma fala que é muito ruim, porque faz a pessoa passar mal, mas para cada um é de uma maneira. Então vamos abrir para perguntas.
Pergunta da platéia:
O índio toma o kambô principalmente quando está com “panema”. Queria que o senhor explicasse o que é “panema” e como os índios tomam kambô.
Ni-í:
Não sei exatamente como explicar o que quer dizer “panema” para nós...
Soninha:
“Baixo astral”...
Ni-í:
“Baixo astral”. É isso que dizer que é “panema”.
Soninha:
Uma pessoa que está com “panema” não tem sorte...
Ni-í:
Não tem sorte, não tem coragem para trabalhar, não tem sorte para arranjar o namorado ou namorada... (risos...)
Platéia:
Não tem força para namorar, né?
Ni-í:
Não tem força para casar, para caçar, para pescar. Tudo isso nós chamamos de “panema”.
Platéia:
Aqui nós temos outro nome, mas lá é “panema”.
Platéia:
Aqui se toma Viagra, lá eles tomam kambô... (risos)
Ni-í:
É uma palavra meio complicada.
Soninha:
Nós traduzimos isso como as dificuldades que se têm, tanto na floresta quanto na cidade. O índio toma para caçar, mas houve casos de pessoas da cidade que tomaram e arrumaram um emprego ou um companheiro. O kambô circula no coração. Nosso pajé disse que quando tomamos kambô, ele faz o coração se movimentar da maneira correta, fazendo com que as coisas fluam, trazendo coisas boas para a pessoa. É como se houvesse uma nuvem sobre a pessoa, impedindo as coisas boas de chegar, então, quando ela toma o kambô, vem uma a “luz verde” que abre seus caminhos, facilitando as coisas.
A “panema” é a tristeza, a falta de sorte, a irritação. A pessoa está com “panema” quando nada dá certo e nada está bom. Quando estive com os katukina pela primeira vez perguntei como, vivendo numa situação tão difícil, eles eram tão bonitos e sorriam tanto. O pai do Ni-í respondeu que era porque eles tinham o kambô. Ele disse: “ – o kambô é a nossa esperança, é a nossa alegria. Eu sei que vão vir coisas boas para mim. Estou passando pelo que eu tenho que passar, mas o kambô me dá alegria para passar por todas essas coisas feliz. Já que eu tenho que passar por isso, é mais fácil passar com alegria”.
Léo Artése:
É bom vocês fazerem perguntas porque o Ni-í vai aplicar o kambô para aqueles que quiserem. Ele vai fazer atendimentos aqui a partir de amanhã.
Platéia:
Como se toma o kambô?
Soninha:
O Ni-í pediu para eu responder que ele está todo tímido... Embora ele fale português, não são todos na sua aldeia que falam, mesmo com essa língua sendo ensinada na sua escola hoje em dia. As crianças que não querem aprender português não são obrigadas. Ele fala, mas tem muitas coisas que ele não entende.
O kambô é uma vacina porque eleva em 100% o sistema imunológico. Isso já foi comprovado pelos médicos. Mas ele não é aplicado como uma vacina, não existe agulha. É aplicado com um cipó, que tem um segredo, tudo que envolve o kambô tem um significado. A partir do contato que tenho, acho a medicina indígena brasileira bem complexa, mas também sábia, porque, ao mesmo tempo, é tudo bem simples. Nós entendemos com o coração, com o espírito.
Este cipó é aceso. As mulheres tomam a vacina na perna, mas não na batata da perna. Têm muitos brancos que fazem esse trabalho que aplicam na batata da perna, não é assim. Deve ser aplicada na frente. Isto porque quando vem uma adversidade é o kambô que recebe. Depois aquilo vai passar para você, o ensinamento que você vai receber daquela situação. E os homens tomam no braço, porque o kambô na nossa tradição é o nosso guia, é o nosso guia e conselheiro.
Com a brasa deste cipó que foi aceso é feita uma leve escamação na primeira camada da derme. O kambô vem cristalizado e para ser utilizado é dissolvido, manipulado. Ele trabalha o que ele quer. Várias pessoas podem tomar para gastrite, por exemplo, mas ele vai atuar em cada um de maneira diferente. Ele faz o trabalho dele, entra no corpo e vai buscar a “panema”, o desequilíbrio.
Algumas pessoas vomitam, geralmente vem a bílis. Dizem que todo o desequilíbrio está ligado ao nosso fígado. Então a pessoa vai botar para fora. Pode parecer muito amargo, mas isso está relacionado às nossas amarguras, às nossas tristezas e às nossas dores. Tem gente que toma kambô e têm visões espirituais, ou sonhos e não sentem uma “pancada” tão grande. Têm pessoas que são tranqüilas e têm pessoas que sentem mais.
A vacina é aplicada para as mulheres na perna e para os homens no braço. O kambô chega muito rápido no coração e então põe para fora os impedimentos. Pode ser através do vômito ou de uma limpeza intestinal; pode trazer um esclarecimento; a pessoa pode escutar uma voz. Cada um vai ter a sua informação.
Léo Artése:
Só lembrando, quando você for fazer perguntas, diga seu nome e de onde você é.
Zaida, de Florianópolis:
Lá em Santa Catarina tem um lugar onde alguns índios aplicam o kambô. Eu queria saber quantas doses são necessárias.
Soninha:
Qual é essa etnia que trabalha com o kambô?
Zaida:
São os guaranis de lá.
Soninha:
Eles podem ter aprendido com alguém, porque o kambô é da região amazônica. Das 53 etnias de lá que usavam a vacina, hoje existem 13. Essas 13 etnias geralmente não tomam muito, mas os katukina tomam bastante. Então teria que ver com quem esses guaranis aprenderam.
O tratamento básico é de três doses, se a pessoa não tem nada crônico. Agora, se a pessoa não tiver nada crônico, e quiser entrar num estudo sobre o ser dela, ela pode tomar seis doses. Não dá para dizer exatamente quantas doses são necessárias. Sempre pedimos para que a pessoa tome no mínimo três doses. Podem ser em três dias consecutivos, pode ser com um dia de intervalo entre uma dose e outra, pode ser com um intervalo de sete dias ou, no máximo, uma lua, 28 dias. Se passa mais tempo que isso entre uma dose e outra, o kambô vai ter que trabalhar tudo que havia trabalhado antes novamente. É dessa maneira que costumamos trabalhar. Se for uma coisa crônica, ou a pessoa quer fazer um estudo profundo, ela toma três vezes seguidas, ou toma em uma semana, para acelerar o processo.
Léo Artése:
Soninha, talvez também seja interessante você dizer o tempo de duração do efeito para o pessoal.
Soninha:
Seis meses. Como nós vivemos na cidade, muitas coisas acontecem e tudo é muito rápido. Então dizemos que durante seis meses a pessoa fica imunizada. Embora em certos casos isso possa durar mais. Por exemplo, houve um caso de uma pessoa que pegava muita gripe, tomou kambô e ficou um ano e meio sem pegar gripe. Quando vamos fazendo amizade com a força do kambô, ela toca o nosso coração para tomarmos mais. Tem gente que sonha com isso, mesmo passando por experiências difíceis.
Os katukina tomam bastante kambô. Eles podem tomar, por exemplo, quando voltam da cidade, pois entraram em contato com o branco e com muitas outras coisas. O curador também toma depois de aplicar o remédio em dez pessoas, porque eles dizem que a “panema” vem para quem está trabalhando com o kambô. É uma coisa muito fina, um estudo muito fino, uma iniciação muito fina que se passa para poder estar apresentando este remédio. É preciso ter força para poder segurar as ondas que vem.
Léo Artése:
Acho que a pessoa que perguntou queria saber o tempo da “passagem”, da duração da experiência.
Soninha:
Depende. Têm pessoas que retornam em quinze minutos. O efeito é rápido, geralmente dura entre três e cinco minutos, que podem parecer intermináveis. Depende muito de cada caso. Tem gente que toma e diz que foi a coisa mais gostosa do mundo, não sentiu nada. É a história daquela pessoa. Quanto mais harmonizada ela estiver, mais agradável será o encontro.
Eu tomo todo mês e sempre “passo baixo”, como eles dizem lá no Acre. Uma vez eu tomei no braço para ver o que os homens sentem, tomei onze pontos. Dessa vez eu “passei baixo” mesmo. O kambô me falou: “isso é para você estudar, para ver como é, e para você ter mais amor ainda por cada um com quem você está trabalhando”. Você tem que entender, e para entender você tem que entrar na força, você tem que tomar. Se não tomar, não dá para trabalhar com o remédio. Por isso eu tomo todo mês. Já cheguei a tomar vários pontos, hoje em dia eu tomo um ponto. E mesmo assim é bastante forte para mim, mas é o que me dá força para que eu possa fazer o que tenho que fazer.
Os katukina tomam quando voltam da cidade, ou quando aplicam em várias pessoas. Às vezes eles passam um período tomando todos os dias, por trinta dias, por exemplo. Eles chegam a tomar 300, 500, 800 pontos. Mas eles são índios. Fala para eles quantos pontos você já tomou.
Ni-í:
Eu já cheguei a tomar 350 pontos.
Platéia:
De uma vez?
Ni-í:
Só de uma vez.
Platéia:
E o que aconteceu?
Ni-í:
Fiquei desmaiado uma meia hora.
Soninha:
Nasceu novamente.
Soninha:
Temos um companheiro que tomou 270 pontos com dez anos de idade. É um estudo forte. Nós podemos ver o grau no qual os índios se encontram para poder fazer esse trabalho. Na cultura deles é assim. Para eles é bonito ter as marcas dos pontos de kambô. Quanto mais marcas um índio tiver, mais forte ele é, mais caçador, mais bonito.
Ni-í:
Mais namorador...
Soninha:
É, mais namorador... E os katukina são índios mais bonitos do Acre. Você tem quantos filhos?
Ni-í:
Eu tenho sete filhos e uma mulher.
Soninha:
Mas é muito pouco. Um dia desses nasceu outro neném dele e aproveitei para perguntar quantos filhos ele tinha. Geralmente tem muita gente na mesma casa, e eu nunca havia feito essa pergunta. Achei que deviam ser uns dezesseis e ele disse que eram só sete. Aí eu disse que ele estava atrasado, pois outros índios tinham muito mais filhos.
Ele tem uma esposa só, porque ela disse que não queria que ele tivesse outras esposas. Mas eles podem ter mais de uma esposa. O que achei interessante com relação a isso foi que nas casas onde havia duas esposas, havia mais harmonia do que às vezes no nosso caso, em que temos apenas um casal. Eu até disse para meu esposo que ele tinha que arrumar outra esposa, porque assim tudo fica mais harmonizado. Ele respondeu que era melhor ficar só comigo, porque uma só já dá muito trabalho e eu disse que se ele tivesse duas as coisas ficariam mais fáceis (risos...).
Giovana, São Paulo:
Você falou desse garoto de dez anos. Tem alguma idade particular que se toma? Não tem nenhuma restrição?
Ni-í:
Entre nós não há restrições. Crianças de um ou dois anos já podem tomar. Começam a tomar a partir de um ano. Com doze anos já podem tomar 250 pontos. Já está chegando a idade de ter...
Soninha:
Responsabilidades...
Ni-í:
Responsabilidades, como caçar ou casar. Significa que já está ficando adulto. Por isso que eles tomam 250 ou 350 pontos.
Giovana:
Mas se é um bebezinho que tem alguma doença. Aplica-se o kambô nele?
Ni-í:
Sim. Tenho um menino de um ano que já tomou quatro vezes. Todos os meus filhos começaram a tomar a partir de um ano de idade.
Soninha:
As mulheres grávidas também tomam. Tomam quando vão parir e tomam novamente depois que tiveram o neném, para poder limpar. Como elas já estão imunizadas, não dão para os recém nascidos, porque já tem no leite. As crianças são fortes, não tem as doenças que vemos por aqui.
A primeira vez que nós viemos juntos a São Paulo, ele perguntou por que as pessoas aqui tinham tantas doenças. Perguntou o que era depressão. Disse que tinha ouvido falar de muitas doenças que nem sabia que existiam e que os katukina, mesmo com tudo que eles passam, não tinham essas doenças todas, porque sempre que estavam “apertados” tomavam kambô para “desapertar”. Aplicam quando precisar.
Fábio, São Paulo:
Como os ancestrais dos katukina souberam que é justamente essa rã é que fornece a secreção? Tem tanta rã lá na Amazônia!...
Soninha:
Conta a história.
Ni-í:
O nosso povo começou a usar kambô através dos pajés. O suplente do pajé estava muito doente, e o pajé não conseguia curar seu assistente. Então um dia ele tomou a ayahuasca, que é um cipó, e o espírito da ayahuasca mostrou para ele que existia outro tipo de remédio que é da floresta também. Ele sonhou com esse remédio, e o espírito da ayahuasca mostrou: “é um tipo de rã, é verde, e está em tal canto. Vá lá, vai pegar ela, mas tenha cuidado, tem que pedir a permissão, para não machucá-la”.
Então o pajé pediu para ir lá onde o espírito marcou. Pediu para o espírito ter força e ir lá e pegar essa rã e trazer para ele. Esse espírito foi lá, pegou a rã, trouxe para o pajé, para o pajé tirar a secreção da rã, e aplicar no paciente dele. Porque ele estava muito mal, e o pajé não conseguia mais segurá-lo. A partir daí nosso povo começou a usar o kambô, porque nós acreditamos, nós vimos que havia curado essa pessoa. E desde então, até hoje nós usamos o kambô.
Soninha:
Dizem que o kambô é muito antigo, né?
Ni-í:
É esse remédio é muito antigo.
Soninha:
Não se sabe há quanto tempo ele existe.
Ni-í:
Ninguém sabe há quanto tempo a gente vem usando. O uso desse remédio vem do nosso passado.
Platéia:
Como é feita e extração da secreção da rã? Ela sofre alguma conseqüência com isso?
Soninha:
Não.
Ni-í:
Não.
Soninha:
Explique para eles como é. O remédio é tirado das costas da rã, não é?
Ni-í:
Nós pegamos a rã, o kambô. Nós chamamos a rã de kambô, o nome técnico eu não sei. Nós pegamos o kambô, pegamos um pauzinho, raspamos, fazemos um palito – mas tem que tirar com cuidado, para não machucá-la. Pegamos o bracinho dela, e vamos tirando a secreção. Depois, colocamos em uma madeira para secar. Depois que a secreção está seca, está pronta para fazer a aplicação.
Platéia:
Quanta secreção dá para tirar de uma rã? Quantos “pontos” dá para fazer?
Ni-í:
Se a rã for grande dá para fazer entre 200 e 300 pontos (...). Nós colocamos a secreção num pau, mas não é qualquer um. Ele precisa ser escolhido, pois isso faz parte da medicina.
Soninha:
Como o cipó também.
Ni-í:
O cipó também. O cipó é antiinflamatório. Esse cipó tem uma história, ele nasce através daquela formiga preta. Ele se transformou através da formiga, por isso ele é antiinflamatório.
Eliana Maria, de São Paulo:
Eu queria saber se é qualquer rã ou se é uma espécie determinada.
Ni-í:
Não é qualquer rã.
Soninha:
É só essa.
Ni-í:
É só uma. Não é qualquer rã que dá esse remédio. É só uma, o kambô.
Léo Artése:
Phyllomedusa bicolor.
Soninha:
Existe uma outra rã da mesma cor, que é prima-irmã dela, só que tem o olho vermelho. Por isso, hoje em dia, é preciso tomar muito cuidado com quem se toma esse remédio. É muito perigoso. Tem também a questão das patentes. Hoje em dia existem oito laboratórios querendo patentear o kambô para transformar em injeção. Então, tem que se ter muito cuidado, com toda essa febre que tem por aí. Isso também se tornou uma forma de ganhar dinheiro. Saiu uma reportagem no Globo Repórter, e isso foi muito ruim, porque a pessoa que deu a entrevista para a reportagem não era um índio. Até explicou como é tirada a secreção, explicou muitas coisas e virou uma confusão. Depois disso a ANVISA proibiu a divulgação do kambô. Não foi proibido tomar o remédio, mas a publicidade foi proibida, porque uma pessoa que não conhece pode confundir com essa outra rã que é muito parecida e matar alguém.
Os índios têm todo um conhecimento. Tem as palavras certas, tem as orações na língua deles. Não é qualquer pessoa que sabe essas coisas. Eu que estou com eles sei como é difícil aprender a falar, os sons, a maneira correta de dizer. Eles chamam a Phyllomedusa bicolor de “esmeralda”, a “esmeralda da floresta”. A outra rã é igualzinha, mansinha também, tem cinco dedinhos, mas é venenosa.
Um caboclo lá do Acre me contou que ia aplicar o kambô em alguém, mas quando chegou a hora de aplicar a pessoa mudou de idéia, pois ele estava cobrando sessenta reais e ela conhecia outra pessoa que cobrava trinta. Então esse caboclo viu que esta outra pessoa ia usar a rã errada e avisou. Foi uma coisa de Deus mesmo, pois se acontecesse algo facilmente e bem rápido sairia no jornal que o kambô tinha matado alguém.
O kambô é um remédio de conhecimento. É um remédio espiritual e material, pois ele age na matéria, no desequilíbrio. Mas é preciso tomar cuidado. Nesse caso, poderiam dizer que o kambô matou, mas quem teria matado mesmo não seria o kambô, mas sim a ganância daquela pessoa. Graças a Deus esse rapaz não foi vítima. E acredito que o cara que alertou-o, mesmo não sendo índio, era uma pessoa bem ligada nas coisas da floresta, tem todo um respeito.
Daniel, São Paulo:
Gostaria de saber se essa rã existe em grande quantidade e se ela sofre algum tipo de ameaça de extinção.
Soninha:
Ela é abundante na Amazônia, mas com toda essa popularidade do kambô, ela corre riscos, porque não é todo mundo que tem cuidado para pegá-la. Os katukina falam com ela, pedem que ela dê o remédio para que eles possam se curar e possam curar as outras pessoas. Então ela libera a secreção. Depois disso, eles devolvem a rã, não tiram toda a secreção que ela tem, pegam apenas o que ela soltar. Agora eu já vi outras pessoas que tratam a rã super mal. E é preciso considerar que esta secreção também é a defesa dela.
Platéia:
Solta sangue, não é?
Soninha:
É. Solta até sangue. Ela não tem predadores. Se a jararacuçu, que é uma cobra que ou mata ou aleija naquela região, ou o gavião pegarem o kambô, eles morrem na hora. Ela ama o ser humano, porque ela mata esses animais, mas, no caso dos seres humanos, ela mata o que está querendo nos matar. Mas existem pessoas que pegam o kambô de qualquer maneira, tiram suas defesas e a deixam cansada e esmorecida. Também estão enviando o kambô para outros lugares, então existem muitos riscos. Não sei o que pode acontecer.
Quando conheci o kambô em 1999 trabalhei com o kambô dos caboclos, depois trabalhei com dos índios. Era totalmente diferente. Pode ter o mesmo resultado. Também cura, mas os caboclos usam menos pontos, fazem outro estudo.
Acredito que com os Katukina – que considero meu povo, pois fui adotada por eles – não vai acontecer nada, porque aquilo é a família deles. A kambô é a mãe deles, é parente deles. Mas com essa onda que está por aí a gente não sabe. Teve um caso de uma rã que foi levada para a Alemanha e ficou em cativeiro. Na hora de tirar o remédio dela, o remédio não funcionou, não aconteceu nada.
Maurício:
Queria saber se tem algum cuidado, algum tipo de alimentação antes de tomar, algum tipo de dieta.
Soninha:
Nós pedimos que a pessoa esteja em jejum e de preferência que não tenha relação sexual na noite anterior. Para que ela possa receber sua cura. Pedimos também o mesmo cuidado para o dia que a pessoa tomar a vacina. Desta maneira, a kambô pode nos trazer muita força. Atendi um rapaz que me disse que levantava cem pesos na academia. Quando ele tomou o kambô ficou tão forte que no mesmo dia pediu para colocarem duzentos pesos. Aconteceram várias coisas com ele, porque antes de tomarmos o kambô nós estamos fracos, e ele nos confere força, mas é preciso saber ministrar essa força. Precisamos ter calma antes de começarmos a fazer coisas com as quais não estamos acostumados.
Pedimos essa dieta porque se alguém comer antes de tomar kambô, vai precisar colocar tudo que comeu para fora antes de expulsar o que estamos buscando expulsar, que é a “panema”. Este é o motivo da dieta.
João Paulo, Ribeirão:
Gostaria de saber qual o sentido mais espiritual para tomar e se na tribo eles tomam mais num sentido de cura física ou num sentido de cura espiritual.
Soninha:
Você vai responder? Você que é o convidado. Fica tomando kambô demais e fica me botando para trabalhar... (risos...).
O kambô é um remédio físico e espiritual. A pessoa pode tomar para uma doença e entender outras coisas daquele seu processo. Eu mesma estou com um caso. Eu e meu esposo temos um inimigo que é um tipo de câncer. É um câncer que, quando a pessoa volta da cirurgia, fica aleijada, ele acaba com a pessoa. Meu marido já está com esse câncer há dois anos e três meses e é o único caso desse tipo que está sem seqüelas. Tem uma pessoa que está com esse mesmo câncer há dez anos e continua viva, mas ficou cego. Meu marido está com tudo perfeito. Ele já passou por duas cirurgias. Da última vez o médico perguntou como era possível aquilo e eu respondi que era com a ajuda do kambô e do Santo Daime. Eu acredito e eu vejo que é isso. Da segunda vez que ele operou, o médico disse que ele já estava com os dois pés na cova. Aconteceram várias complicações durante a cirurgia e o médico disse que ele poderia ficar retardado. E isso não aconteceu, está tudo funcionando bem, graças a Deus. Pode ser que a história dele seja fazer a “passagem” [morte] devido a esse câncer, mas nós estamos dando o testemunho de que ele está inteiro, com tudo funcionando. As pessoas perguntam como é possível. Este é um exemplo de como o kambô age na parte espiritual e na física.
Os médiuns tomam o kambô e muitas coisas ficam claras para eles, eles podem adquirir o equilíbrio mediúnico e muito entendimento. O kambô pode ajudar pessoas que não conseguiam sonhar, pode abrir a “terceira visão”. Ele abre a nossa percepção. E isso inclui tudo, porque não dá para separar espírito e matéria, que são uma coisa só. Se o seu espírito está legal, a sua matéria também ficará. E se você só vive no espírito, ele traz você para a terra, para as coisas que você tem que dar conta. O kambô é um remédio de origem animal, então ele traz a coisa do animal, que tem que dar conta da matéria.
Karen, Joinville:
Eu queria saber qual o tempo que dura a aplicação.
Soninha:
Depende...
Ni-í:
É, depende da pessoa, se ela é forte ou fraca. E depende da doença também.
Soninha:
O tempo para colocar é rápido. Vamos supor que tudo dure cinco minutos. Logo depois de colocar, a pessoa já está vermelha ou rosa, depende. No caso do meu esposo, o pajé tinha me dito para colocar um ponto e eu resolvi colocar mais, porque é uma situação delicada. Coloquei três pontos e ele não sentiu nada. Ele está tomando toda semana, e está consciente, está super legal. Ele toma e fica cor de rosa, põe a bílis para fora, mas não tem “passagens” fortes. Ele fala que o kambô foi uma mãe para ele e que o pegou no colo.
Depende muito da pessoa, tem pessoas que são tinhosas e “passam baixo” mesmo na força. Elas falam que o kambô é ruim. Não é o kambô que é ruim, é a pessoa que é ruim. O kambô mostra como ser uma pessoa melhor, sempre vai te ensinar como ser melhor. Atualmente tenho tomado um ponto e tem sido muito forte. Ele tem me mostrado muita coisa espiritual.
Léo Artése:
Mais alguma pergunta? Ele vai estar aqui amanhã para fazer as aplicações. Aqueles que quiserem já podem deixar seus nomes.
Ana Maria, Rio de Janeiro:
Então ele mexe com a consciência também não é?
Soninha:
Um ser espiritual mandou me chamar e falou que o kambô é um “clarificador da mente”. Então ele mexe na consciência sim. Abre a percepção, a visão, dá direção, trabalha com os chacras, a coluna, com a kundalini. Nós atendemos muita gente, e cada pessoa recebe uma informação do kambô. Tem muitas pessoas que nos dão informações que nem entendemos direito. Mas compreendo, porque já vi aquilo, sinto aquilo. O que muda é que a pessoa está usando uma linguagem diferente, mas a gente entende. O que a pessoa recebe depende do que ela tem. Ele sempre dá o que a pessoa pode receber, e amplia as coisas que ela já tem.
Vera, São Paulo:
Gostaria que o Ni-í falasse um pouco mais sobre a medicina katukina. Esta é uma medicina que diz que kambô e ayahuasca estão juntos e trabalham juntos. Sem isso, o kambô fica um pouco solto, como se ele fosse a medicina espiritual, e a medicina espiritual é a ayahuasca. O kambô, como ele já falou, é uma medicina trazida pela ayahuasca...
Soninha:
Nós não tocamos muito no assunto da ayahuasca porque nos chamaram para falar do kambô, do remédio. Na verdade, o remédio foi recebido dentro desta força, mas muitas pessoas estão procurando um remédio, e não espiritualidade. Muitas pessoas podem achar legal quando chegam numa aldeia para tomar o kambô e vai ser feita uma pajelança, mas tem outras pessoas que podem nem querer tomar. Existem pessoas que falam: “ – Não vim aqui atrás de religião, quero um remédio. Me dói isso, me dói aquilo, me dói tudo”. O kambô trata tanto quem tem quanto quem não tem o entendimento de Deus. Ele é um remédio para as coisas do físico e aqui no sul ele tem trabalhado muito a parte espiritual.
Para os índios, está tudo ligado. A espiritualidade não é vista como uma coisa separada. A vida deles é aquilo ali. É a linha deles. Eles disseram que quem traz a sabedoria é a cobra, e o kambô é o guia. Mas existe esta relação entre o kambô e a ayahuasca. Os katukina são ayahuasqueiros, todo sábado eles tomam ayahuasca e fazem a pajelança deles. Quem toma kambô com eles está ligado em tudo isso. Por isso nós não falamos muito nessa parte espiritual.
Gisele, Juiz de Fora:
Gostaria de saber se tem alguém que não pode tomar, alguma contra-indicação, ou se é para todo mundo.
Ni-í:
O kambô não tem...
Soninha:
Contra-indicação.
Ni-í:
Contra-indicação. Só tem contra-indicação se o cara for operado, aí não pode vomitar, não é?
Léo Artése:
Tudo bem gente? Então essa foi a última pergunta e amanhã ele estará aqui conosco para fazer as aplicações, ele e a Soninha.
Daniel, São Paulo:
Sobre a aplicação. Existe um ritual? Se existe, esse ritual é coletivo ou individual? E o que difere um ritual de um índio e de um caboclo?
Soninha:
A aldeia é diferente porque é um santuário. Trabalhei com os caboclos por dois anos e sei que a maneira de aplicar dos índios é diferente. Não sei porque, eles nunca me explicaram. Deduzi que é porque algumas pessoas não querem pôr o kambô na parte da frente da perna porque querem ir à praia, e não querem mostrar uma marca na perna. A maneira dos índios de aplicar é diferente porque eles seguem sua tradição, a forma como eles aprenderam, e porque eles já estão ligados. Porque se toma o kambô todo mês? Porque quando você toma sempre e se entrega para aquela força, você e ela passam a ser a mesma coisa.
Para fazer qualquer coisa, tem que ter uma iniciação. Se um médico fizer apenas um ano de medicina, ele não pode operar ninguém. Na maneira dos katukina, eles vão passando pelas iniciações desde pequenininhos. É um estudo. E eles têm as revelações deles. O kambô é para todo mundo, mas tem que ver se a força abre para todo mundo.
Daniel:
E é em grupo ou individual?
Soninha:
Na aldeia, nós tomamos em grupo ou individualmente, dependendo da necessidade de cada um. No consultório, nós aplicamos individualmente, mas também podemos aplicar em grupos, para casos como de casais que queiram tomar juntos. Então também pode ser individualmente ou em grupo. Vai muito de cada um. Às vezes a gente trabalha em igrejas, como a igreja católica, onde estou trabalhando atualmente, e todo mundo toma junto.
Nós temos um assistente, que também precisa estar ligado na história. Desde de que a pessoa não tenha vergonha de vomitar perto do outro, de arrotar, enfim, de várias coisas que possam estar sendo eliminadas, ela pode tomar junto com outras pessoas. Vai de cada um. Mas sempre tem um ritual. O kambô tem que ser preparado, tem uma oração na língua katukina, têm os cânticos. Além disso, seguimos o que o kambô nos diz, porque ele fala conosco. Nos diz quantos pontos devemos pôr em cada pessoa, às vezes revela qual é a doença, depende de cada um.
Platéia:
Quanto à contra-indicação etc, gostaria de saber se você tem alguma história de paciente psiquiátrico no kambô.
Soninha:
Várias. Já teve até casos da pessoa chegar, como se diz, “surtada”, e voltar do surto, com três doses consecutivas em três dias. Depende muito do caso. Muitos psicólogos e psiquiatras indicam seus pacientes. Indicam gente que está muito perturbada. Tem também mães-de-santo que não conseguem resolver aquele caso e mandam para mim. Muitas pessoas que não conseguem resolver os casos falam que o kambô vai ajudar. Inclusive, mulheres menstruadas também tomam.
Platéia:
Mesmo com a medicação psiquiátrica?
Soninha:
Mesmo com a medicação. Nós não cortamos a medicação porque não somos médicos. Mas no dia que a pessoa toma o kambô ela já percebe uma diferença, e aí é o médico que vai destrinchar o restante.
Léo Artése:
Bom gente, não temos mais tempo para perguntas agora. Acho que tem que tomar mesmo para saber mais. Quanto tempo você vai ficar aqui?
Ni-í:
Eu vou ficar até o dia 30 (de março).
Soninha:
Aí chega o Shere (professor indígena katukina).
Ni-í:
O Shere está chegando dia 28 desse mês.
Soninha:
A gente ainda não sabe se vai aplicar aqui ou no nosso consultório em São Paulo. Depois que eles forem embora vou continuar com os atendimentos. Além disso, nós fazemos grupos uma vez por ano para quem quer ir conhecer a aldeia, tomar kambô e participar do nosso encontro de cura lá.
Platéia:
Qual é o valor da aplicação?
Soninha:
Cento e vinte reais a dose. Algumas pessoas acham muito caro. Sempre gosto de lembrar que já está inclusa a consulta e que tomando o kambô com a AKAC nós estamos contribuindo com a aldeia, pois o dinheiro volta para lá. Outras pessoas podem dizer que já tomaram por menos, mas não conheço esse trabalho. O nosso trabalho tem esse custo, pois é uma coisa profissional mesmo. E também para podermos continuar com trabalho lá na aldeia, porque tem toda uma organização, têm os meninos que vão coletar. É uma coisa muito bonita que tem que continuar. Eles são ricos em conhecimento, e nós temos que ajudar para que toda essa riqueza continue.
Ni-í:
Agradeço pela ocasião, por este encontro, estou muito feliz. Muito obrigado por esta oportunidade. Quem quiser receber a cura é só entrar em contato conosco.
Soninha:
Também temos bolsas para as pessoas que não tem condições de fazer o tratamento. Podemos conversar, estamos abertos. Não significa que se a pessoa não tiver dinheiro, não vai tomar. Também gostaria de agradecer a todos.
Ni-í:
Para finalizar a minha fala, vou cantar na minha língua para vocês receberem todas as forças do kambô e todas as forças do índio katukina.
Seguiram os cantos (aplausos).
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(*) Sonia Maria Valença Menezes é terapeuta floral e acupunturista. Conheceu o kambo em 1999, por intermédio do seringueiro Franscisco Shimbam, de Cruzeiro do Sul (Acre) e depois começou a receber aplicações de seu neto Genildo. Mais adiante, aproximou-se dos Katukina, tendo viajado algumas vezes ao Acre. Atualmente promove palestras e aplicações de kambô, acompanhada de Ni-i ou sozinha, em São Paulo e em várias outras cidades. É integrante do movimento religioso do Santo Daime.
Ni-í nasceu no rio Gregório e mudou-se ainda menino para o local onde hoje é a Terra Indígena do Campinas, no Acre. Foi durante muito tempo professor bilíngüe (português e katukina) e é hoje cacique suplente, agente de saúde da aldeia e representante da Associação Katukina do Campinas (AKAC).
(**) A antropóloga Bia Labate realizou uma consultoria para o evento. Esta apresentação foi gravada pela produtora cultural Christiana Marques da Cruz (christiana.cruz@gmail.com), que participou da equipe de apoio do Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo. Depois foi transcrita pelo biólogo Rafael Guimarães dos Santos, estudioso das religiões ayahuasqueiras (banisteria@pop.com.br) e Mestrando em Psicologia Social e editada por Isabel de Rose, Mestre em Antropologia social e também pesquisadora do tema (belderose@yahoo.com.br).