A lenda da jibóia branca, guardiã do nixi pae dos Huni Kuin
Leopardo Sales Yawa Bane Huni Kuin (*)
Apresentação na mesa redonda “Os usos da ayahuasca: aspectos religiosos, antropológicos e científicos”. Sexto Movimento pela Vida, Centro de Ensino Médio, Palmas, 25 a 28 de maio de 2005 (**).
Obrigado. Queria agradecer a oportunidade, agradecer à Tânia e à Bia. É a primeira vez que eu venho a Palmas e queria falar um pouco da tradição do uso da ayahuasca pelo povo Huni Kuin. Eu tomei a ayahuasca em 1995 na Aldeia Jordão. Tomei quando tinha sete anos, com os meus professores. Recebemos uma grande missão, na nossa aldeia, nosso povo, assim como outros povos têm suas tradições, como os Arawak, ayahuasqueiros do Peru, do Brasil, os Shipibo e outros. Estou muito honrado de estar falando aqui, e queria agradecer os palestrantes que eu conheci hoje e ontem, do Daime, o Paulo Roberto e os irmãos da UDV. Bom, a nossa tradição é diferente... dos encantados da mata, da floresta... a missão da jibóia foi recebida e transmitida para nós, vou falar disto, destas coisas antigas.
Foi o meu professor, Mëtun Ares Maia, da Aldeia Belo Monte, meu avô por parte de mãe, que me ensinou a lenda da Jibóia Branca, o mito, do poder, conhecimento, mistério e ciência da floresta encantada. Conta-se que o guerreiro foi procurar caça. Ele estava caçando e acabou encontrando um encantado, a Mãe da Jibóia Branca, que morava no lago grande. (Explico: a jibóia morava nesse lago e se transformava em mulher, ia para a terra e depois voltava para o lago). E a partir desse encontro, nesse momento, o guerreiro se apaixonou. Pediu ela em casamento e ela aceitou. O guerreiro e a Jibóia tiveram uma vida muito boa, conhecimento e aprendizado no mundo espiritual da Jibóia Branca.
Nesse lago grande, na comunidade da Jibóia Branca, viviam muitos encantados. Todos eles conheciam o segredo da planta do poder que é a ayahuasca, o cipó. O cipó para nós é nixi pae; a folha se chama kawa. O guerreiro aprendeu com a Jibóia Branca todos os ensinamentos do canto, do mantra – nós chamamos “miração da Jibóia Encantada” –; aprendeu como se preparar para chamar os encantados, todas as criações de Deus, que nós chamamos Kushipa. São uns cantos na nossa língua, a nossa língua se chama Ratxa Kuin. Cantamos o Huni Meka, que é o nosso canto, nosso mantra, da Jibóia. Nosso pajé, nosso professor, nosso mestre, e o nosso Kushipa, que é o nosso Deus, nos ensinou. Foi assim que o povo Huni Kuin recebeu estes conhecimentos. Recebemos o presente de curar nossas comunidades, parentes, de orientar os ensinamentos, recebemos através da ayahuasca a sabedoria, todos os conhecimentos que vêm da ayahuasca, a cultura ayahuasqueira do cipó. Meu avô Sueiro, que eu gosto demais, foi uma liderança importante do Jordão. Ele me convidou, quando eu tinha sete anos, para tomar a ayahuasca. E na primeira noite eu estava com uma miração muito boa, com várias imagens em preto-e-branco, vermelho, cores super azuladas nessa miração... tive uma visão, um encontro com a Jibóia Branca na miração.
Meu professor, Mëtun, o líder mais antigo, uma pessoa de experiência, me contou essa história da Jibóia Branca, que eu estava contando para vocês. Bom, vou falar do mito de novo. Dentro dessa comunidade que o guerreiro foi morar junto com a sua esposa, a Jibóia Branca, eles tiveram três filhos. E assim ele foi convivendo na vida deles, fazendo tudo como eles. A lenda conta que ficaram três anos morando nesse fundo do lago escuro. Teve um certo dia que os pajés da comunidade foram buscar o cipó e a folha, para preparar nixi pae. O guerreiro, que já estava ali há um tempo, nunca tinha experimentado o cipó, mas tinha curiosidade. Ele ia no ritual do nixi pae sem tomar porque a Jibóia não deixava participar da miração do cipó sagrado, do ensinamento. Mas naquele dia ele queria participar, era o momento. Então o guerreiro pediu permissão para tomar o cipó. Já tinha passado três anos. A Jibóia Branca falou que ele não podia porque era muito forte a miração de todos os segredos da Jibóia. Em volta da mata tinha uma miração muito sagrada. Aí ele falou: “— Mas eu quero participar, já estou há três anos aqui, para mim já é bastante e eu quero participar dessa cerimônia para ver qual é o canto da Jibóia que vai me mostrar na miração. Eu sou guerreiro e eu tenho que participar”. Aí a mulher dele falou: “— Está liberado, tem condições de você tomar e se concentrar nos cantos da Jibóia para você ter uma miração boa, para trazer paz para a nossa comunidade, conhecimento, aprendizado, sabedoria, luz do cipó ayahuasca.”
Então eles tomaram essa noite, foi uma noite muito importante. Eles estavam fazendo a cerimônia lá no fundo do lago escuro – todos os encantados, todos os animais desse local participaram da cerimônia. Eles começaram a cantar, serviram um copo para cada um, serviram mais uma, a segunda, a terceira rodada... Aí começaram a receber as forças do cipó, a incorporação de todas as vibrações da ayahuasca, a energia da terra, da água, da floresta, e o guerreiro começou a perceber as forças das mirações da Jibóia. Ele ouviu os cantos e viu muita coisa, aprendeu bastante coisa, e num certo momento ele viu uma Jibóia Branca engolindo um guerreiro na miração. A partir do momento que viu que estava sendo engolido pela Jibóia Branca na miração, o guerreiro não agüentou, começou a gritar alto na cerimônia, “ah ah ah ah!”. Mas ele não podia gritar, ele podia participar mas sem gritar – tinham avisado isto para ele no começo.
Os pajés que tinham preparado a folha e o cipó ficaram assustados, tiraram a miração do guerreiro, forçaram uma oração de cura no corpo dele e assim amanheceu o dia. Como a missão era muito sagrada para a Jibóia Branca, eles ficaram um pouco chateados, ofendidos com aquilo que aconteceu lá na cerimônia. E ficou um clima muito pesado para o guerreiro. Quando amanheceu o dia, as Jibóias foram caçar. O amigo do guerreiro – o guerreiro tinha um amigo, peixe encantado do lago – que estava sabendo o que tinha acontecido, aproveitou que as Jibóias foram caçar, e veio na direção do guerreiro para conversar com ele. O peixe falou da família que o guerreiro deixou lá na comunidade que ele tinha vivido, na Terra, lá com os Huni Kuin... Lembrou que os filhos do guerreiro, com a sua primeira mulher, estavam procurando o pai, sofrendo sem ele e disse que ele deveria voltar para a comunidade dele lá na aldeia.
O guerreiro aceitou o convite do amigo para levar ele até a casa dele, numa comunidade Huni Kuin. Quando as Jibóias chegaram da caçada, o guerreiro tinha fugido e retornado para a comunidade dele. Nessa volta, saindo do lago escuro, ele passou remédio em todas as partes do seu corpo, nos ossos, nos olhos, para se transformar de novo, e ele voltou a ser Huni Kuin. Voltou para a antiga mulher dele. Quando ele chegou, ela perguntou o que tinha acontecido com o guerreiro, e ele contou toda a história de como surgiu o encantamento com a Jibóia, que ele se apaixonou, que achou muito bonito, que ele foi morar com os encantados dentro do lago, que havia tomado a folha e o cipó, teve a miração, e que ele gritou na noite da cerimônia e então ficou um clima chato e ele resolveu ir embora. Ele contou todo o processo da carreira do encantamento com a Jibóia Branca na comunidade dele, os cantos que ele recebeu na miração do cipó. A mulher escutou tudo, ficou morando com ele, mas ela ficava com medo dele voltar para a comunidade da Jibóia e não deixava ele sair de casa.
Passou um tempo, e o guerreiro voltou no mesmo lugar que ele havia encontrado com a Jibóia Branca na primeira vez no encantamento. Ele voltou lá porque ele já tinha visto, naquela miração que ele gritou, que ela tinha uma missão a cumprir. Então aí guerreiro encontrou o filho da Jibóia Branca, o filho dele, que estava lá procurando o pai. O último filho dele, o filho pequeno, a Jibóia pequena, veio e mordeu a ponta do dedo do guerreiro, mas não tinha força suficiente para comer o pai, engolir. Então o a Jibóia pequena chamou um irmão para ajudar. Veio um irmão e tentou morder a ponta do dedo do pé e também não conseguiu engolir. Chamaram então o outro irmão, e o outro irmão veio e também não conseguiu engolir. Chamaram a mãe, que era a Jibóia grande, guerreira. A Jibóia veio, conseguiu engolir os dois pés do guerreiro, foi engolindo o pé para cima na cintura, na barriga, aí ele começou a agir, começou a gritar, pediu socorro para a comunidade. Começou a gritar bem alto na floresta, “rei rei rei!”.
O pessoal da comunidade Huni Kuin onde o guerreiro morava, escutou e veio ver o que estava acontecendo. O guerreiro estava na metade, a mulher dele estava engolindo ele, mas ainda estava vivo, gritando. Aí, os guerreiros da comunidade mataram a Jibóia, conseguiram bater na cabeça e conseguiram matar a Jibóia. Tiraram o guerreiro vivo da boca da Jibóia. Só que o guerreiro estava todo quebrado, mordido de cobra, com as juntas todas quebradas. O guerreiro pediu para os parentes dele levarem a Jibóia também. Aí os discípulos do guerreiro levaram ele para a comunidade, e enterraram ele e a Jibóia um do lado do outro, como o guerreiro pediu. Não enterraram tudo junto porque ele explicou que ele ia se transformar em cipó – ia nascer um cipó da sepultura aonde ele foi sepultado – e a Jibóia ia se transformar em folha, kawa, a Rainha da Floresta.
Esperados três meses nasceram o cipó e a folha do jeito que ele falou. O guerreiro também tinha falado que era para eles tirarem o cipó com muito respeito. Antes de tirar o cipó e folha, pedir licença à natureza, pedir licença ao cipó e à folha. O guerreiro também ensinou mais uma coisa sagrada, os ensinamentos do mantra através da miração, o canto que foi dado. Aí como era encantado, o cipó cresceu rapidinho, deu dessa grossura [mostra com as mãos]. A comunidade mais antiga, dos índios mais velhos, foram lá, pediram licença, fizeram uma oração, fizeram uma cerimônia em volta desse cipó e da folha, tiraram e fizeram o cozimento do jeito que o guerreiro falou, na panela de barro, colocaram folha, cipó e água. O fogo tinha que ser feito com uma árvore especial que tem na floresta, que é yapa karu, a madeira que a gente queima para fazer o preparamento do cipó.
Toda a comunidade foi convidada para participar dessa cerimônia de ayahuasca. A partir desse momento, tomaram o cipó, e começaram a ter mirações na primeira dose, na segunda dose, na terceira dose... e começaram a receber todos os mantras que o guerreiro tinha falado. Através dessa miração eles conseguiram captar todos os cantos Huni Meká, os mantras do cipó, e todas as sabedorias da natureza, a ciência, o mistério, os conhecimentos da guardiã da Jibóia, receberam essa missão.
Eu queria, na homenagem desse evento, no fechamento dessa palestra na parte da manhã, fechar com um canto da Jibóia Branca, homenagear o povo Huin Kuin, o povo Inca do Peru, o povo Ashaninka do Rio Amônia, o pajé Benki, os ayahuasqueiros, os pajés Manchineri do Acre, Rio Branco, a homenagem e agradecimento ao padrinho Alfredo, o padrinho Sebastião, o Mestre Irineu e todos os mestres da União do Vegetal. E queria pedir licença para todas as irmandades para cantar uma coisa diferente do Daime e da União do Vegetal, que é um canto tradicional do povo indígena, do Brasil. Eu quero cantar essa missão que foi me dada – a minha carreira, trabalho, meu estudo, política, projeto que vim executando no ano passado. Eu comecei a valorizar mais o canto e o ensinamento depois que eu tinha dezoito anos. E agora eu tenho vinte e um anos e quem sabe daqui há quarenta anos eu me torno uma liderança da minha comunidade, como meu avô. Quero homenagear todos os companheiros que conheci, eu ofereço os cantos da Jibóia Branca.
Apresentação transcrita pelo biólogo Rafael Guimarães dos Santos, estudioso das religiões ayahuasqueiras (banisteria@pop.com.br), editada pela psicóloga Maria Clara Araújo (clararebel@yahoo.com.br), também pesquisadora desta área de estudos, e depois submetida à apreciação do autor.
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(*) Nascido em 1983 na aldeia Belo Monte – Reserva Huni Kuin (Kaxinawá) do Rio Jordão. Yawa Bane está estudando para ser tornar liderança do seu povo, conduz cerimônias de nixi pae (ayahuasca) em São Paulo e é representante do povo Huni Kuin da TI do Rio Jordão.
(**) A antropóloga Bia Labate prestou uma consultoria para o Sexto Movimento pela Vida para a organização desta mesa redonda, composta por:
Mediadora: Bia Labate – antropóloga – (SP) (bia_labate@yahoo.com.br)
1.Ovídio Octavio Pamplona Lobato – médico neurologista - (PA) (ipadma1@ig.com.br)
2. Edmir Oliveira – Dirigente da Barquinha – (DF) (edmiroliveira@ibest.com.br)
3. Wilson Gonzaga - médico psiquiatra e dirigente da ABLUSA - Associação Beneficente Luz de Salomão - (SP) (wgonzaga@institutohermes.com.br)
4. Helio Gonçalves – médico e dirigente da UDV – (GO) (demec@udv.org.br)
5. Paulo Roberto Souza e Silva – Dirigente do Santo Daime – (RJ) (paulo.ogum@globo.com)
6. Rogério Moacir Cunha – dirigente da Escola de Comunhão da Ayahuasca Mística Universal (TO) (rogemcunha@yahoo.com.br)
7. Leopardo Sales Yawa Bane Huni Kuin – estudante do nixi pae (ayahuasca) Huni Kuin (Kaxinawá) - (AC/SP) (yawabane@terra.com.br)
Ver mais em: http://alto-das-estrelas.blogspot.com/2005/05/mesa-redonda-sobre-ayahuasca-palmas-28.html.
No blog Alto das Estrelas se encontram transcritas também algumas das outras apresentações desta mesa redonda:
"A Hoasca na recuperação da dignidade humana", por Wilson Gonzaga:
http://alto-das-estrelas.blogspot.com/2005/07/hoasca-na-recuperao-da-dignidade.html
"Aspectos institucionais e religiosos da União do Vegetal" por Hélio Gonçalves:
http://alto-das-estrelas.blogspot.com/2005/07/aspectos-institucionais-e-religiosos.html
O “Hinário das Estrelas”, por Edmir Lima de Oliveira:
http://alto-das-estrelas.blogspot.com/2005/07/o-hinrio-das-estrelas.html