Carta de professor da USP para o Painel do Leitor sobre reportagem da Folha
Divulgo aqui a carta enviada hoje ao Painel do Leitor da Folha de São Paulo por Júlio Assis Simões, em resposta a mal intencionada reportagem da Folha que procura associar a Parada Gay de São Paulo a apologia ao uso e tráfico de drogas. A carta pode ser tomada como um manifesto do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP) a respeito do episódio:
"Ao Painel do Leitor,
Venho manifestar-me a propósito da matéria “Panfleto para Parada Gay orienta como cheirar cocaína” (Cotidiano 08/06/07, p. C4).
É, desgraçadamente, muito comum o recurso de desqualificar movimentos sociais autênticos acusando seus promotores de serem “drogados” ou “facilitarem o acesso às drogas”. Na década de 1970, jovens que se insurgiram contra a ditadura militar brasileira foram acusados de subversivos e drogados, como se encarnassem todos os males que supostamente ameaçavam o governo, a moral, a civilização e a humanidade. Hoje assistimos à reedição dessa estratégia, agora tendo como alvo gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e todos os segmentos comprometidos com a luta pela expressão da diversidade sexual e pelo reconhecimento de seus direitos. Uma estreita definição do drogado como um doente que é, ao mesmo tempo, um criminoso, vem assim se adicionar às injúrias de vício, indignidade e abjeção que ainda recaem sobre as sexualidades dissidentes.
É lamentável que um discurso que demoniza da forma mais violenta e unilateral o uso de “drogas” seja acionado por autoridades da medicina e da segurança pública, que parecem ignorar todo um conjunto de medidas de educação e prevenção, adotadas oficialmente não só no Brasil, mas em vários outros países, que se pautam pelo princípio da redução de danos. Um princípio que reconhece, do modo mais sóbrio e razoável, que pessoas sempre utilizaram “drogas”, pelos motivos mais diversos, nas circunstâncias mais variadas, e que não há razões para supor que deixarão de fazê-lo – como, aliás, qualquer profissional sério da medicina admite, pelo menos em privado. Sendo assim, o que cabe fazer, do ponto de vista da saúde pública, são ações educativas destinadas a minorar os danos pessoais e sociais causados pelo consumo descuidado. Essa diretriz vem se mostrando uma alternativa eficaz ao proibicionismo da "guerra às drogas", o qual naturaliza a ilegalidade e potencializa a criação de mundos de delinqüência ligados tanto ao tráfico quanto à repressão, com os quais convivemos hoje nas metrópoles brasileiras.
Confundir essas ações importantes e ponderadas com propaganda, apologia ou facilitação do uso de drogas, de modo a desautorizá-las e inventar novas bruxas a serem caçadas – agora na pele de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e seu legítimo movimento pela diversidade sexual – é uma atitude de alarmante irresponsabilidade daqueles que, por ofício ou incumbência, devem adotar uma postura de equilíbrio, discernimento e sensatez em suas tarefas de informação, educação e prevenção sobre assunto tão grave e delicado. Isso vale não só para as autoridades médicas e policiais, mas também (e sobretudo) para a imprensa.
Júlio Assis Simões
Professor de Antropologia da Universidade de São Paulo
Membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP)"