Comentário sobre o livro "Os incas, as plantas de poder e um tribunal espanhol"

Por João Batista Libanio (*)

Comentário sobre o livro de Fernando Ribeiro, “Os Incas, as Plantas do Poder e um Tribunal Espanhol”, Editora Mauad, 2005 (Para uma resenha do livro e informações sobre o autor, veja também: http://alto-das-estrelas.blogspot.com/2005/08/novidade-literria-sobre-o-processo.html).

Não é uma recensão. Tipo literário feito para a academia, em estilo analítico e crítico, reduzindo o livro a arcabouço de idéias, para tecer, em seguida, o fatídico juízo soberano do recenseador. Não é introdução, já feita pela pena magistral do prefácio de L. Boff. Nem apresentação editorial, que as orelhas retratam. Que é então? Não sei. É um navegar por um livro, conhecido antes de lê-lo, desconhecido depois de tê-lo feito. Quem priva da amizade do casal Luiz Alberto e Lúcia, pais do Fernando, acompanhou o drama existencial da prisão, sofreu os meses de escuridão carcerária e alegrou-se pascalmente com a liberação dos inocentes – eram dois - das garras do poder.

A ladainha de agradecimentos que Fernando desfia na primeira página já revela que pisamos terra diferente. Longe dos formalismos de teses em que o doutorando, sinceramente ou não, tece loas aos orientadores, leitores examinadores e outras pessoas envolvidas no processo acadêmico. Aqui se jogavam uma vida, uma experiência espiritual, uma comunidade de vida, um ideal religioso, uma missão e embate cultural de raízes seculares. E as vozes se levantaram desde o Brasil até o Japão, passando pela Alemanha e densificando-se na Espanha.

L. Boff, ao prefaciar, imerge o leitor nas águas profundas do livro. Entrelaça a dupla história em jogo, separada pelo curto lapso de 5 séculos: a história real e atual da prisão e a memória fantástica do Império Inca. O elo dos séculos se teceu pela bebida cerimonial “Ayahuasca”. Lá, na civilização Inca, ela ressumava sacralidade. Hoje, no aeroporto de Barajas, foi profanada pela Polícia sob a categoria de droga perigosíssima.

O balancear entre as duas histórias ressoa no coração de Fernando, que transformou o relato bibliográfico em aventura de alcance religioso e cultural para além da singularidade de sua pessoa. Tudo começa com um mergulho psicanalítico na solidão da Prisão em Madri, aliviada pelo gesto de escrever. Duas luas cheias se passaram por detrás das paredes do Presídio e chegaram a nove entre a saída e volta ao Brasil – tempo de gestação humana – enquanto no recôndito da alma jovem do prisioneiro se ia formando a idéia-mestra do livro: articular a experiência presente com a cultura inca, raiz forte da América pré-colombiana. Agora esse filho escrito, gerado lá na noite escura do cárcere, viu a luz na solar cidade do Rio de Janeiro. Nasceu, como Fernando mesmo confessa, para cumprir uma missão. Não o pensou para os iniciados, para os místicos. Era a necessidade de criar um elo com os “leigos, os acadêmicos, os juízes do mundo moderno”. É uma revelação no sentido mais forte do termo, tirando o véu, com que a cultura ocidental cobriu a ciência dos Incas, seus sacerdotes, rituais e cerimônias. Recupera o tesouro da civilização Inca, o El Dorado que os espanhóis na ganância de ouro nunca encontraram e muito menos lhe perceberam o sentido profundo religioso, antes fizeram tudo por destruí-lo, em vão. Essa ciência – natural e espiritual, – que está detrás da misteriosa bebida da floresta, se submergiu e agora explode na própria Espanha. A prisão se fez sacramento – sinal visível – da aparição da invisibilidade dessa realidade. Anunciá-la é o sentido profundo desse escrito. O veredicto final da Corte espanhola não significou unicamente a inocência dos acusados, mas o reconhecimento do renascer do broto de uma árvore que os espanhóis da conquista pensaram ter destruído.

Isso aparece no final do processo. Mas naquele primeiro momento, para o olhar policialesco, ali estavam dois traficantes internacionais, presos em flagrante, um deles, adulto jovem, filho da pós-modernidade desvairada dos anos 60, que bebe, cheira e se pica com drogas, em busca de aventuras fora da realidade, enjoada da civilização que o Estado policial defende. Escondiam-se, porém, naqueles quase quarenta anos de vida, sonhos, desejos de meter-se em pesquisas das tradições ayahuasqueiras e da soterrada cultura Inca. E na Espanha deparou com a grandiosa obra de Garcilaso de la Veja – Comentarios reales de los Incas del siglo XVI -, escrito em espanhol arcaico com mais de mil páginas. Encontrou-se o outro lado da ponte. Fernando relê com olhos novos a obra do inca mestiço, detendo-se na história dos Incas antes do embate com a máquina espanhola de morte, com promessa de outros estudos que continuem a aventura dessa civilização.

O autor persegue os lençóis de água da cultura Inca que resistiram à devastação das camadas geológicas pelos séculos de silêncio e dominação. Eles afloram em outros rios e regam paisagens diferentes de nações indígenas plurais e de tipos originais de pessoas: curandeiros populares, xamãs, ayahuasqueiros pelo interior do Peru, Bolívia, chegando com vestes modernas a penetrar ruas e avenidas do século XX. Os dez litros da misteriosa bebida, que Fernando levava consigo, visibilizavam o fio condutor dos séculos que o separavam dos Incas.

O livro fascina pelas diferentes viagens tanto no presente como no passado. Fernando e Chico não só voaram para outro Continente físico, mas viajaram para dentro da própria interioridade num jogo emocionante de sofrimento pesado e esperança leve, de horas escuras e momentos luminosos. Quando o bloco de cimento e as grades os trancavam, Fernando ainda conseguia imaginar que a silhueta da montanha que vislumbrava “devia ser bonita, e por cima de tudo o céu estrelado”. Toca o leitor a ligação interior com a natureza que atravessa o relato, e tanto mais contrastante quanto mais o ambiente dos seres humanos traduzia a dureza e rigidez do universo da repressão. A beleza da natureza, que volta a cada momento no relato, e a feiúra do mundo dos humanos que trancafiam outros humanos ostentam a dor e a vergonha do contraste. Que dirão de nós em séculos vindouros as pessoas, ao saberem que metíamos seres humanos dentro de jaulas como animais ferozes?!

Pela leitura se faz viagem escura desde o momento da prisão no aeroporto até a soltura e volta ao Brasil. Meses de túnel. Quem lê sente mais a dor de acompanhar o périplo do processo. Pois ciente da inocência dos acusados, percebe o terrível equívoco das suspeitas levantadas pelo aparato repressor, que desencadeou verdadeira operação de guerra. Torna-se chocante o contraste, entre a pureza dos que levavam e usam a bebida cerimonial e a fantasia da inteligência policialesca espanhola.

A viagem pelo século XVI sofre do mesmo paradoxo. O Império Inca expande-se nas asas do sentido de humanidade, levando a diversos povos indígenas cultura, organização e dignidade, enquanto o espanhol veio embriagado de ganância de ouro e prata, triturando sangrentamente uma civilização de séculos e de extraordinária riqueza simbólica, religiosa e humana.

Mais uma vez o texto provoca no leitor o sentido de indignação ética. O livro o conduz pelos meandros da história, opondo a epopéia Inca à devastação européia. E para vergonha do Cristianismo, a primeira se construiu à luz de uma religião do culto ao deus Sol e a segunda invocou a nome de Cristo para destruir tudo o que se lhe opunha. Sob a veste cristã, esconderam-se interesses de outra natureza: econômicos e políticos de Empresas e dos Estados.

Atravessa a narrativa do século XX uma aura mística na relação entre os membros das comunidades. Por onde passam os seus membros são recebidos com celebrações, festa e alegria. E no sofrimento, difunde-se sentimento de solidariedade. Faz lembrar as narrativas de Lucas que embelezam os primeiros anos das comunidades cristãs. Fernando e Chico, nas sombrias horas da prisão revelam fé numa missão maior que o simples desenrolar da parafernália repressiva. Algo de maior e de longo alcance se jogava dentro daqueles interesses pensados pela visão curta da ação policial.

Acompanha a tônica principal da narrativa a consciência de que nada se vive na superficialidade do acontecido. Tudo aponta para desígnio superior, seja numa interpretação para cada um dos atores quanto para as comunidades. Há um sim e não nos acontecimentos. Nada se entende numa compreensão limitada ao puro fato.

“Em alguns momentos cheguei a pensar”, narra Fernando, “que havíamos entrado em um barco furado”. Era um primeiro impulso, imediato. Leitura simples da irracionalidade do que acontecia com eles. “Mas depois, em outros momentos, tudo parecia que se encaixava, como se houvesse um plano muito preciso”. Essa frase oferece chave de leitura de toda a narração.

Há um lado de naufrágio, de fracasso, de iniqüidade na dupla narração passada e presente. Lá no Império dos Incas pareceu tudo ser destruído. Lá na prisão de Madri o projeto despretensioso de uma escala em direção ao Japão ruía por terra. É um lado. Mas, essa adversativa modifica a intelecção da narrativa.

A civilização Inca permaneceu em muitas ramificações nativas; “estão aí até hoje”, observa Fernando, “pelas regiões dos Andes, no Peru, na Bolívia, na Amazônia brasileira, e mantêm vivas suas tradições, não se renderam à cultura do homem branco. São xamãs, curandeiros, pajés, muitos que trabalham com as plantas sagradas”. Neles deixaram os Incas sua marca.

E o sim e não de Madri de hoje? O projeto primeiro foi interrompido. Tentativa de aborto. A vida venceu essa agressão e nasceu em Fernando a intuição de ligar, por meio da bebida ritual e sagrada, dois mundos distantes. Lançou raízes nos Incas destruídos pelo Estado espanhol do século XVI para entender o que está fazendo o novo Estado espanhol com a suspeita a respeito da bebida. “No silêncio daquela sela, entre as grades daquela prisão espanhola, nascia a vontade de ir buscar esses estudos, e apontar novos holofotes sobre essa face tão marcante e ignorada da memória americana”.

O livro fecha com um conto “A Cerimônia”. É mais que conto. É quase uma tese, vestida com beleza simbólica, sem a rigidez acadêmica. E termina com um grito. A tese: lá nos inícios, na civilização Inca, havia uma Ciência do Sagrado, guardada e transmitida num Círculo Sagrado de Conhecimento. Veio a destruição da conquista. Ela se eclipsou e agora emerge em diversos lugares em plena modernidade. É o momento de mostrar à modernidade que ela, a bebida ritual do “vinho sagrado”, o “vinho das almas”, a “Planta do Poder” não se confunde, como fez o Sistema de Inteligência espanhol com droga, mas reflete uma civilização com sabedoria que merece o respeito. E o grito final vem das entranhas do sol ameríndio em protesto contra a continuada dominação européia.

Terminadas as múltiplas viagens, um leitor radicado na religião cristã de acento ocidental sente-se perplexo. Invade-o o frescor religioso, diria místico, que brota de experiência com raízes bem antigas e escondidas. Não lhe escapa certa analogia com a vivência de comunidades cristãs em situações análogas. Percebe a seriedade e gravidade do uso ritual da ayahuasca com sua impressionante força espiritual. Abre-se espaço para um diálogo inter-religioso do Cristianismo com essas antigas tradições incas em espírito de respeito e compreensão para que os dialogantes aprendam um do outro. Estamos diante de um relato pessoal que se ultrapassa a si mesmo para transformar-se num anúncio – boa notícia – de harmonia com a dimensão do espírito e da natureza vindo das entranhas da civilização Inca para a modernidade ocidental perdida na voragem do dinheiro e dos bens materiais. E tudo isso escrito numa linguagem viva e atraente que conduz suavemente o leitor pelos múltiplos itinerários.

(*) Este artigo, escrito pelo teólogo jesuíta João Batista Libanio, será publicado na REB (Revista Eclesiástica Brasileira) e na Perspectiva Teológica, duas importantes publicações da Igreja Católica no Brasil. Foi disponibilizado por Fernando Ribeiro com ineditismo para o Alto das Estrelas.

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