Kuntanawa: memórias de um povo amazônico
Publicado aqui.Fabíola OrtizEles foram quase exterminados no início do século 20 com o avanço dos seringais no estado do Acre, na região norte do Brasil. Sua língua se extinguiu e sua cultura praticamente desapareceu. Os Kuntanawa são um povo que hoje luta pelo resgate de sua identidade e tradição. Eles se misturaram com a população cabocla local no oeste do Acre e estiveram prestes a perder seus traços indígenas.Em 1911, durante as perseguições armadas aos povos indígenas que acompanharam a abertura e a instalação dos seringais em todo o Acre, a etnia Kuntanawa, ou inicialmente grafada ‘Kontanawa’ – o povo do côco –, contabilizava apenas cinco sobreviventes. Atualmente, soma cerca de 400. Eles não falam mais a sua língua tradicional, pertencente ao tronco linguístico Pano, falam apenas o português.Com o desafio de reavivar a memória e reforçar os laços de identidade, diversos povos do tronco Pano se reuniram na aldeia Kuntamanã, próxima à fronteira com o Peru, no final de julho, num grande encontro de confraternização. O “Festival Cultural Indígena Corredor Pano” representou o primeiro movimento de mobilização e revitalização das tradições indígenas perdidas. Em um momento de auto-afirmação de sua unidade em meio às diferenças étnicas, estavam todos lá: Huni Kuin, Yawanawa, Shanenawa, Shawãdawa, Jaminawa, Nukini, Marubo, Katukina e Kuntanawa. Todas essas etnias foram convidadas e protagonistas do que seria o grande encontro dos povos de língua Pano.Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), a população indígena do Acre é de cerca de 10 mil, e a maioria é composta por povos de língua Pano. Essa família linguística é falada por povos especialmente no noroeste do Brasil e também na Bolívia e Peru. Nesses três países, o Pano possui cerca de três dezenas de línguas faladas por aproximadamente 40 mil pessoas, sendo a maioria no Peru com cerca de 30 mil, outros 8 mil no Brasil e não mais do que mil na Bolívia.Das línguas que compõem a família Pano, estima-se que existam 26 vivas, isto é, línguas ainda faladas. Contudo, uma porção expressiva dessas 26 se encontra em processo de extinção, correndo o risco de se juntar às outras 10 que já desapareceram.O festivalForam seis dias de atividades de confraternização e rodas de ‘mariri’ no terreiro – dança indígena coletiva em que todos dão os braços num ritmo binário ao som de ‘maracá’, o chocalho indígena utilizado em festas, cerimônias religiosas e guerreiras feito a partir de uma cabaça seca. Houve muita festa, brincadeiras, cantos, pescaria, trocas de presentes e rituais sagrados com o consumo de rapé e ayahuasca, o cipó da Amazônia bebido de forma ritualística pelos povos do Acre.A diversidade não foi só entre os povos indígenas da língua Pano que compareceram com sua trupe de pajés, cada um representando a sua respectiva etnia, mas também entre os não índios, convidados brasileiros e estrangeiros, que foram conferir o festival, levar um pouco de sua cultura e aprender sobre os costumes e a vida na floresta amazônica.Tinha gente de todo o tipo: de acreanos, paulistas, cariocas e candangos, até alemães, suíços, ingleses e representantes indígenas da Groenlândia, no Canadá. Inclusive um xamã esquimó que alimentou a diversidade étnica com o ritual da tenda do suor em pleno rio amazônico. Foram seis dias de reunião e pluralidade em que cerca de 200 pessoas vivenciaram experiências mais diversas de estar no coração da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo e a maior concentração de água doce e biodiversidade do planeta.Além das rodas de cantos e danças, houve também o grito de preservação da Amazônia. O maior perigo da Amazônia hoje é o desmatamento, garante Haru Xinã, o jovem líder indígena Kuntanawa que se lançou ao desafio de reanimar as tradições de seu povo. A devastação da floresta tem sido motivo de grande preocupação por parte dos Kuntanawa que vivem às margens do rio Tejo, na Reserva Extrativista (Resex) do Alto Juruá, próximo à fronteira com o Peru, situada no extremo oeste do Acre. A exploração de uma forma irresponsável dos recursos da floresta fez com que os povos Pano ali reunidos no ‘Corredor Pano’ lançassem um apelo para a recuperação da floresta. Acompanhe nas próximas semanas a história dos Kuntanawa, o povo em reconstrução; a longa viagem pelos rios da Amazônia até chegar a aldeia Kuntamanã ou Sete Estrelas, onde ocorreu o festival; a conversa com o líder indígena Haru Xinã Kuntanawa, embaixador mundial da paz das Nações Unidas e fundador da organização Instituto Guardiões da Floresta (IGF); o uso ritualístico da bebida sagrada ‘ayahuasca’ e a espiritualidade do povo Kuntanawa. Publicado em 8/11/2010.