Mescalina em caldo

Relato enviado para o Alto das Estrelas sobre uma experiência com o cacto San Pedro (Echinopsis pachanoi).

"Num final de janeiro extremamente chuvoso, no ano de 2007 em que a ONU reconheceu oficialmente o problema do aquecimento global como um dos mais graves do destino planetário, nos refugiamos por quatro dias num sítio para tomar San Pedro, um cacto andino que contém mescalina.

As portas do céu estão na boca. É preciso engolir um caldo verde, gosmento e amargo como um mingau de cacto, para ter acesso às chaves do paraíso, das quais São Pedro é o zelador.

Para chegarmos, um ordálio: carro encalhado duas vezes, mas depois tudo se arranjou.

Um dia antes subimos numa montanha bem alta, por uma trilha espessa em meio à mata, com nosso guia abrindo o caminho a facão, no alto tomamos chuva, mas depois o tempo abriu e vislumbrou-se todo o esplendor da região. Um dia depois fomos à cachoeira banhar-nos e refletir sob o sol. No dia da experiência ficamos horas fervendo e coando uma espessa sopa feita de cacto desidratado em pó diluído em água e fervida. O cheiro não era desagradável, lembrava o do chimarrão.

Às 18 horas tomamos, cada um, um copo cheio até a borda. Alguns ainda tomaram um pouco mais depois. Eu contentei-me com a primeira dose. Por cerca de duas horas sente-se o estômago pesado e uma onda um pouco nauseante que vai crescendo, alguns vomitaram, eu consegui manter-me estável em meu poleiro de pedra, pois todos nos encarapichamos em pedras do terreno, de onde assistimos um magnífico pôr-do-sol e a chegada da noite, no lusco-fusco do crepúsculo. O efeito então veio muito forte e deslumbrante, os musgos das pedras saltando, as nuvens formando figuras dançantes ou formas de animais.

Mais tarde senti intensa sede de luz e como os demais preferiam a penumbra, fechei-me no banheiro onde deleitava-me observando a luz e as cores, o brilho cromado dos metais, os detalhes das coisas, como formigas na parede e os próprios desgastes, ranhuras e espessuras da tinta da parede.

Mais que um mergulho introspectivo, ou mesmo com olhos fechados, prefiro a claridade intensa e o arregalado olho lisérgico a vislumbrar num facho a luz líquida, a macroscopia e a sensação de uma energia que flui como um alimento indispensável. Meus companheiros acenderam uma fogueira que eu gostava de observar de longe afastando-me do local onde estávamos à noite para ver as luzes bruxuleantes em torno da casa.

Sentia-me muito bem, em paz interior, falar com minha mulher ao celular foi muito espantoso e saciou-me a saudade. Estava num estado e num lugar que são para mim um paradigma da felicidade: êxtases psicodélicos e ar livre no meio da natureza, momento há muito desejado. Tinha um forte sentido comunitário com todos, especialmente os anfitriões, a quem me sentia agradecido por convidar-me e propiciar-me aqueles momentos, e ao nosso ‘mestre’ do San Pedro que o havia distribuído de forma tão generosa e era uma companhia tão cheia de conversas e ensinamentos, especialmente sobre o próprio San Pedro, usado há milhares de anos nos Andes, representado na civilização de Chavin de Huantar, no Peru, e em Tiwanaco, na Bolívia, planta básica atualmente entre os curadores tradicionais do norte do Peru.

Minha amiga depois comentou que não entendia como eu não achava tudo mágico, como se houvesse um encadeamento dos fatos que devesse algo a uma potência oculta e não apenas ao acaso e à ação humana. Eu lhe disse que via nesses momentos intensificados uma epifania da natureza, mergulhando na imanência pura das coisas. Isso era uma intensificação sensorial e também crítica, sempre me senti extremamente crítico nos estados lisérgicos, uma lucidez extendida, uma verdade em ácido é, geralmente, inabalável, mesmo depois da experiência passada. As teias de ilusão parecem se desvanescer, e é possível dar-se conta de coisas antes opacas.

Com a nossa mescalina do cacto fiquei depois horas meditando e “viajando” olhando para um só ponto, no caso, um detalhe do teto amadeirado da casa. Nesses momentos também pude refletir sobre mim e sobre a relatividade das aflições e a importância dos momentos felizes e da essência simples da beatitude hedonista e lucidez crítica.

Lia nesses dias “Um judeu sem Deus”, de Peter Gay sobre Freud, e pensava na teoria psicanalítica e na história dos povos, enquanto alguns ruídos que se ouvia ao longe não me faziam deixar de esquecer a crise civilizatória que o aquecimento global, a miséria e a expansão humana caótica representam. Diferentemente de minha adolescência quando tinha esperanças imediatas de mudança totais, de surgimento de pólos do progresso humano, hoje vejo com mais ceticismo o destino humano e isso entristece, dou-me conta de uma diferença essencial entre os velhos e os jovens, os últimos têm mais esperanças. Continuo com as mesmas convicções e valores, mas menos esperança. Quando se acabou de ter um filho (como é o meu caso) essas coisas comovem. Antes eu podia ver a decadência do capitalismo em sua fase terminal como um espetáculo complexo a ser decifrado e combatido na expectativa de vitórias, mas hoje vejo que quando o meu filho tiver a minha idade, o Oceano Ártico e muitas das geleiras que amo terão deixado de existir e haverá dez bilhões de seres humanos vivendo em megacidades poluídas, violentas e enfermas.

Todas essas idéias e pensamentos povoaram minhas introspecções naquela noite de intensa focalização mental e serviram de inspiração, marco e lembrança para a decisão de viver sempre mais e mais feliz, mesmo que diante de um mundo que desaba, sabendo que podem ser construídos círculos de resistência e de investigação, que cultivem ações e afetos comuns."

Para saber mais sobre o San Pedro, leia a entrevista de Bia Labate com Anthony Henman, "Uma antropologia que floresce fora da academia: Anthony Henman e el cactus San Pedrito", clicando aqui.

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