Novidade literária sobre o processo contra o Santo Daime na Espanha em 2000

Re-ligando elos - uma novidade literária

Fernando Ribeiro


Como muitos sabem, eu e Chico Corrente, filiados ao Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS) fomos surpreendidos em 2000, no aeroporto de Madrid, portando cada um cinco litros da bebida cerimonial Santo Daime (Ayahuasca). Fomos detidos e passamos cinqüenta e quatro dias em um centro penitenciário de segurança máxima. Surgiram cartas e declarações de apoio, muita gente se movimentou, e o caso acabou tomando proporções grandes. Foi realizada uma minuciosa investigação e no final das contas o processo foi arquivado, pois nada foi encontrado que justificasse o teor das acusações.

Saindo da prisão escrevi várias mensagens para a rede de internet “daime groups”, relatando os fatos. A última foi “mensagem de uma vitória”, quando o caso foi oficialmente arquivado. Posso dizer que me sinto hoje, quase cinco anos depois, retomando o fio daquela comunicação. Não se trata de voltar no tempo, muita água já passou por baixo da ponte, mas os assuntos e os estudos estão sempre na pauta, especialmente a legalidade e o reconhecimento das tradições enteógenas na sociedade moderna, e nesse sentido o caso da Espanha é sempre uma referência importante. Tenho ouvido muita coisa sobre aqueles fatos, e percebo que a desinformação é grande. Trata-se, provavelmente, de uma falha nossa e talvez seja esse um dos motivos de retomar o fio daquela comunicação.

Ainda durante a tempestade – comentávamos isso nas conversas noturnas, dentro da cela – tanto eu como o Chico sabíamos que o caso havia ganhado proporções inesperadas. Não podíamos ter certeza se era parte de um “plano” maior, se tinha que acontecer daquela maneira, mas uma frase ficou gravada na memória: “se não era, virou!”. Evidente que não era mais um caso pessoal ou particular nosso: estava em andamento um capítulo importante na história das plantas sagradas americanas, agora atravessando os portões do velho continente.

Acredito que quase sempre é assim, na hora do fogo muitas emoções afloram, vamos dando conta como é possível, mas só depois, quando a poeira senta, é que vem chegando a compreensão, a clareza dos fatos. Era a Espanha e o ano dois mil. Chegam muitos pensamentos e seria difícil colocar tudo em palavras....

Resumindo, o desafio era colocar na cabeça de gente totalmente alheia a este universo que aquela bebida não era uma “droga”, e nós não éramos “traficantes” conforme o laudo de acusação afirmava; o assunto era outro, e tínhamos muito pouco tempo para provar isso. Meu pensamento buscava as origens das tradições enteógenas americanas, sua história desde a antiguidade até os dias atuais, e sua sobrevivência aos quinhentos anos de conquista. Era o caminho natural para provar a legitimidade destas tradições: a utilização das plantas sagradas – com respeito e seriedade - em busca de conhecimentos, muito diferente do violento universo das drogas e do narcotráfico. Estava em jogo o abrir ou fechar de uma grande porta.

Ali nasceu a semente de um trabalho, e iniciei a pesquisa no encontro das civilizações. As tradições enteógenas americanas são pérolas finíssimas de conhecimento, uma enorme e desconhecida herança de nossos ancestrais, hoje ressurgindo em plena sociedade moderna. Destes estudos acabei escrevendo um livro: “Os incas, as plantas de poder e um tribunal espanhol”, onde relato os fatos da Espanha no ano dois mil, fazendo um paralelo – afinal, estávamos na terra do Pizarro - com a história dos filhos do sol, quinhentos anos antes, no império dos incas.

Sabia, ao escrever, que o assunto era polêmico, e que a essência desta ciência não cabe em palavras, mas dei o primeiro passo. O alvo desta vez – e isso torna o projeto ainda mais delicado - não é o público “iniciado”, como acontece com grande parte da literatura ayahuasqueira existente. Procurei escrever para pessoas leigas, como eram aqueles juízes e advogados espanhóis, introduzindo o assunto com muito cuidado, sem verdades prontas.

Assim como o processo judicial, o livro foi outra longa jornada, mas chegou ao fim - está pronto- e deve ser lançado em breve pela editora Mauad. Na verdade, é o inicio de um projeto maior, o resgate desta grande e desconhecida herança americana. Sabemos que em muitos países do mundo acontecem ainda processos semelhantes, que existe muita desinformação e preconceito, gerando inclusive perseguição. Espero que este trabalho possa contribuir para que estes enganos não se repitam. Mais: que as tradições enteógenas americanas em suas diferentes manifestações possam ser respeitadas e reconhecidas como um patrimônio legítimo da humanidade.

Consegui ainda um trunfo muito especial: o prefácio. Certamente, e até independente do livro, um documento histórico sobre as tradições ayahuasqueiras americanas, assinado por Leonardo Boff.

O assunto central é esta herança, tão grande e contundente quanto desconhecida, cuja raiz se espalha vigorosa pelos vastos territórios de nosso continente, e reside silenciosa no âmago de uma solene cerimônia.

Está feito o anuncio.

Um abraço a todos.

Fernando Ribeiro (feramazon@yahoo.com.br) nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em março de 62. Passou a infância/adolescência acompanhando seus pais entre Chile e México, pelo exílio político, onde teve oportunidade de conhecer outras Américas. Voltou ao Brasil com 15 anos, e viveu no Rio de Janeiro até os 20, onde cursou a faculdade de história pela UFRJ. Em 82 abandonou a academia e embarcou rumo à Europa, onde esteve três anos entre Itália, Espanha e Portugal.
Em novembro de 85, voltando da longa viagem, tomou dentro de um ritual a bebida cerimonial Ayahuasca, e a partir desse momento decidiu se dedicar ao estudo e conhecimento desta antiga tradição. Fez várias viagens à Amazônia, até que em 89 mudou-se definitivamente para o interior da floresta. Viveu 11 anos no Céu do Mapiá (comunidade e sede do Santo Daime), onde se casou e teve dois filhos. Trabalhou em vários setores - no projeto "daime eterno", foi secretário da Associação de Moradores, deu aula na escola comunitária, e ap artir de 96 passou a fazer viagens ao exterior abrindo mercado para produtos da floresta. Teve oportunidade também de viajar muito pelo interior, e conheceu profundamente o povo da floresta.
No ano dois mil, pós os acontecimentos da Espanha, mudou-se para Juiz de Fora, MG, onde reside atualmente, apesar de manter sempre o contato com a Amazônia. Continua comercializando e abrindo mercado para produtos da floresta (especialmente os óleos vegetais), e é dirigente da Igreja Céu das Estrelas (CEFLURIS). Acompanha também desde a fundação a Igreja Céu de Belém (CEFLURIS, Pará) e se dedica a pesquisar as tradições ayahuasqueiras americanas, tema central de seus escritos.
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