O pajé que virou sapo e depois promessa de remédio patenteado
Bia Labate
Assim ouvi dizer uma vez de um Kaxinawá:
"O kampu era um pajé que morreu e virou um sapo. Antes de morrer, ele disse: '- eu vou ajudar a curar doença'.
"Tem uma época do ano, quando os macacos começam a engordar, que o kampu canta. Assim o pessoal da comunidade sabe que é época boa de caçar”.
"Eles fazem um ritual para pegar o kampu. Ele gosta de ficar em cima de uma árvore. Tem que levar lanterna. Ele canta o canto dele e aí a gente consegue achar ele. Nós conhecemos o canto de todos os sapos”.
"Antes de pegar o kampu, tem que conversar com ele. Só o pajé pode pegar”.
"Tudo na mata tem dono. Tem os espíritos yuxin e os encantados yuxibo. Precisa respeitar para não ser ofendido. Tem que pedir licença – não dá para ir pegando assim o que quiser da natureza”.
"Quando o caçador fica enpanemado, ele não consegue caçar nem pescar. Não acha nada. Atira e não acerta. Então ele precisa de uma injeção de kampu. Também, quando a pessoa está doente, com sujeira dentro da barriga, a gente dá injeção nela”.
"Quando a gente acha o kampu a gente bate na cabeça dele com um palito. Sai um 'leite'. Aí raspa as costas e as patas com o palitinho. É mais ou menos como um leite da seringueira".
"Depois a gente deixa secar. Vira um pozinho. Aí faz três furinhos no braço da pessoa e coloca o pozinho em cima".
"É bom tomar caiçuma de milho aquecida antes. Forra o estômago da pessoa, ajuda nos efeitos. A gente toma de uns três a cinco litros”.
"Em criança a gente não dá injeção. Só depois dos doze anos de idade".
"O kampu prepara o espírito do caçador. Ele fica forte, renovado. Fica feliz com a caçada, pega anta”.
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Certa época andava muito triste. Resolvi experimentar esta espécie de remédio caseiro de vários grupos indígenas amazônicos, mais conhecido como kambô ou kampo – substância retirada da rã Phyllomedusa bicolor, quando estressada (o sapo e o remédio levam o mesmo nome; há variações nas designações dependendo do grupo).
Um amigo indígena aceitou fazer um tratamento comigo. Seriam pelo menos três injeções, a cada trinta dias. Vou contar aqui como foi a primeira.
Era meio dia. Antes de começar, ele me mandou tomar um litro de suco de mamão com água. Ele fez cinco “pontos” no meu braço, com um cipó aceso. A aplicação doeu um pouco. Mas eu não liguei, fiquei conversando. Por dentro, me sentia levemente valente.
Durante cerca de vinte a trinta minutos senti um efeito muito forte. Meu coração disparou – mas as batidas não seguiam um padrão lógico. Minha cabeça latejava. Tudo estava pesado. Saía suor da minha testa. Uma sensação de enjôo pelo corpo inteiro e uma tremedeira leve, como se alguns “fios” corressem por dentro de mim (como se ‘eles’ quisessem fazer este movimento).
Era diferente de qualquer outra sensação que já tive antes. E olha que já experimentei bastante coisa. Meu amigo tinha me explicado no início: – “o kampu aquece o nosso sangue e a nossa cabeça”.
Grogue, tentei vomitar ou defecar, mas não saía nada. – “Tá bom então...”, pensei. Aí, me deitei. Continuava dentro de mim um festival de sensações descontroladas (ruins e novas).
Depois de um tempo, meu amigo mandou sentar e molhou os furinhos com água. Perguntei: – "Porquê você esta fazendo isto?”, - "Para você vomitar”, ele respondeu.
Não muito depois, vomitei. Foi uma enxurrada só, veio tudo de repente, quase escapou em mim mesma. Vomitei pela boca e nariz ao mesmo tempo. Nunca antes tinha vomitado pelo nariz. Éca! Muito estranho. Ficou um gosto horrível na boca e no nariz, que durou até o dia seguinte.
Depois, me deitei de novo, com a mão na cabeça. Meu amigo se aproximou e cantou um canto. Estava de pé, e fazia uns movimentos com as mãos. Não vi como era, porque estava com os olhos fechados. Fazia um ventinho bom em cima de mim. E dava a sensação de que ele sabia o que estava fazendo, que tinha um conhecimento ali – isto me reconfortou um pouco.
Fui para o banheiro de novo. Olhei-me no espelho. Estava feia demais. Ave Maria. Meus olhos vermelhos, saltados para dentro. Ou então eram a bochecha e a boca que estavam todas inchadas. Sapo Bia.
O efeito foi passando até serenar.
Perguntei ao meu amigo sobre a experiência e ele me disse: – “você vomitou, e isto é bom. Mas vomitou pouco, não chegou ainda naquela cor amarela. Seu espírito continua sujo, precisa limpar mais”.
A primeira descrição sobre o kambô foi feita por Constantin Tastevin, um missionário francês, em 1925. A partir da década de 50, o tema atraiu o olhar da medicina. Na década de oitenta, se intensificaram os estudos antropológicos que descrevem o uso por populações indígenas do sudoeste amazônico. É durante esta década também que se afirma que a secreção do sapo é rica em peptídeos (substâncias com dois ou mais aminoácidos conjugados, presentes no organismo, com fortes potenciais para usos terapêuticos). No final dos anos 80, são depositados os primeiros pedidos de patentes.
Logo a prática se espalhou e começaram e aparecer seringueiros do norte e brancos de classe média que aplicavam kambô nas grandes cidades. Houve notícias de que havia gente comercializando a substância para terceiros. Alguns foram acusados de charlatões. Outros viajaram para o Acre, fazendo estágios ou alianças com seringueiros ou com indígenas.
Em São Paulo, estão atendendo no espaço terapêutico Casa do Sol, na Pompéia. O local é dirigido por Sonia Maria Valença Menezes, terapeuta floral, acupunturista e integrante do movimento religioso do Santo Daime. Sonia tomou contato com a substância pela primeira vez em 1999, através de Francisco Gomes e de seus familiares. Depois, viajou algumas vezes ao Acre e acabou tornando-se representante da AKAC em São Paulo.
Dia 16 de março, Ni-í e Sonia deram uma palestra no Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo, organizado pela Associação Lua Cheia, na Pax. A eclética reunião congregou índios, xamãs urbanos, antropólogos, esotéricos e praticantes de artes diversas de cura. A platéia parecia curiosa – mas ninguém se inscreveu para o tratamento com a tal da secreção cutânea da rã verde.
Uma pessoa da platéia perguntou porque Ni-í estava em São Paulo. Assim disse o cacique: "Na cidade tem muita gente que precisa de ajuda, doente, com muitos problemas, depressão... Então nós estamos divulgando nossos conhecimentos. Nós conhecemos este remédio há muito tempo, mas agora o homem branco se interessou por ele. Não dá mais para segurar, não tem jeito. É a gente que sabe usar direito”.
Na ausência dos Katukina, Sonia aplica o kambô em seus pacientes. De acordo com ela, a Casa do Sol seria “o primeiro consultório indígena de São Paulo. Além do kambô, usamos ervas, plantas e pajelança".
De acordo com a antropóloga Edilene Coffaci de Lima, professora da Universidade Federal do Paraná, e que conhece os Katukina há quase quinze anos, "a comercialização da substância por brancos gera insatisfações entre os Katukina, porém, do ponto de vista do Estado, seria complicado estabelecer uma regulamentação do 'uso tradicional do kambô' ou uma espécie de 'reserva de mercado' para a aplicação somente por indígenas, como gostariam alguns”. Para ela, haveria uma “grande diferença” entre “simplesmente usar a secreção do sapo, como índios e seringueiros fazem há muito no alto Juruá, e comercializar a secreção ou a atividade de aplicação do kambô, como tem ocorrido ultimamente.”
Até o momento, o veneno de sapo tem sido incorporado sobretudo aos circuitos das terapias holísticas e das novas religiosidades urbanas. Para a antropóloga, no caso específico dos katukina, estaria ocorrendo um processo de “xamanização do kambô”. Assim explica: “nas aldeias, o kampo é usado principalmente para a caça e para combater a preguiça e é aplicado por qualquer pessoa, desde que tenha atributos morais reconhecidos como positivos pelo grupo. Já nas grandes cidades, há uma tendência a divulgar o kambô como se ele dependesse de conhecimentos secretos e iniciáticos (típicos de um pajé) e a vacina passa a ser usada como um remédio capaz de combater todos males.”
De fato, parece que a substância está sendo propagandeada como uma espécie de antídoto contra “panema de branco”. Não é difícil imaginar que no futuro surgirão muitas variações do uso do kambô. Talvez apareça a igreja do “Santo Kambô da Luz Verde”?
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Ainda não sei dizer se tive benefícios com o kambô. Nos primeiros dias, nada em especial chamou minha atenção. Mas cerca de cinco dias depois comecei a sentir algo do sapo dentro de mim. Não sei explicar direito... Sonhei com a rã verde duas vezes. Era o sapo e eu, eu e o sapo. Talvez eu tenha sido influenciada porque ficara lendo sobre o assunto?
A segunda aplicação foi de sete “pontos”. Desta vez fui bem maltratada. Comecei a achar o sapo meio malvado. Seja como for, a cicatriz que ficou no braço – uma série de furinhos enfileirados na horizontal, que arderam até fechar – dá uma agradável sensação de força.
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Referências úteis:
Internet:
Bigliografia:
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São Paulo, abril de 2005.
Publicado originalmente no site Comunidade Virtual de Antropologia: http://www.antropologia.com.br/ - coluna - edição nº 27