Pesquisadores do NEIP discutem drogas e cultura durante lançamento de livro

Pelo Coletivo DARDisponível aqui: http://coletivodar.org/pesquisadores-do-neip-discutem-drogas-e-cultura-durante-lancamento-de-livro/Esta é a segunda parte do relato sobre o lançamento do livro Drogas e Cultura: novas perspectivas, lançado dia 23 de março em São Paulo. O debate de alto nível foi composto por alguns dos autores do livro e outros convidados, que expuseram as reflexões de quem há muito se debruça sobre o tema de maneira alternativa ao proibicionismo que parece não só querer impedir o livre decidir sobre nossos corpos como também barrar a reflexão descolada de preconceitos e mistificações. Confiram o relato do DAR, presente no evento. Apesar de realizado há algum tempinho, é importante registrar que o lançamento do livro Drogas e Cultura: Novas perspectivas, do NEIP e do MinC, não foi marcado apenas pela mesa de abertura na qual FHC defendeu a realização da Marcha ou pelo coquetelzinho do final ou pela apresentação de música do grupo Músicos Reino do Sol. No meio de tudo isso, não podemos deixar de destacar o mais importante, em matéria de conteúdo: a mesa com o pessoal do NEIP e convidados.Mediada por Maurício Fiore, a mesa contou com Sandra Goulart, Henrique Carneiro, Maurides Ribeiro, Edward McRae e Gê Maruqes, que apresentaram diversos pontos de vista antiproibicionistas. Realizado no clamor das manifestações de ataque a Ayahuasca que tomaram por gancho a trágica morte do cartunista Glauco, o debate contou com inúmeras referências ao assunto, como já logo no início, quando Fiore apontou que “a mesma revista que hoje culpa o daime por todas as questões, colocou em sua capa anos atrás que pessoas cometem crimes e não armas, num momento de tentativa de controle sobre armas”. Não é preciso pensar muito para que se VEJA a má fé e a contradição, já que agora não são pessoas que podem cometer crime utilizando-se do daime, e sim é o próprio o culpado por tudo.Dai-me luzSandra Goulart foi a primeira a falar, e fez uma excelente explicação das origens das religiões ayahuasqueiras, além de um mapeamento de suas práticas atuais. Seu surgimento ocorreu através do contato de seringueiros e grupos indígenas ribeirinhos influenciados por longo período de evangelização. Esse intercambio cultural na Amazônia gerou a religião, que tem tradição 200 ou 300 anos e conta com componentes amazônicos, andinos, cristãos e espíritas. O enfoque varia segundo a região.Segundo Sandra, a primeira religião ayahuasqueira é o daime, criada pelo Mestre Irineu em 1930 – o termo serve tanto pro culto quanto para a bebida. “Dai-me” é um pedido: “dai-me amor, dai-me luz”. Depois surgem cisões, como a Barquinha e a União do Vegetal (UDV, toodas expressando desenvolvimentos particulares dum mesmo conjunto de crenças e práticas.Após a morte do Mestre Irineu, houve “intensa sucessão e disputa pelo seu cargo”, o que gerou fragmentações, como a que gerou o Cefluris, fundado por Padrinho Sebastião e ao qual se alinhava o cartunista Glauco, A partir dos anos 1970, essas religiões começam a se expandir pra outras partes do Brasil, e hoje há grupos em todas as metrópoles do país, de acordo com Sandra..“Essa disseminação coloca com mais agudeza o relacionamento dessas religiões com a sociedade em geral. ligado a um processo de desencantamento com a vida urbana e reencantamento com a floresta”, define, o que “insere cada vez mais esse fenômeno na discussão das drogas em nossa sociedade. Substância psicoativa como ponto central dos rituais coloca em evidência a possibilidade da existência de uso de drogas distinto de um contexto danoso, amoral, violento, etc”.Seriam esses usos impossíveis de manter em outros contextos?, questiona Sandra, que aponta que tanto no uso da ayahuasca quanto de outros psicoativos “é necessário considerar as condições de uso, não só a droga em si e sua ação farmacológica”.Todos excessos são prejudiciais, inclusive o de abstinência – as matrizes totalitárias do proibicionismo O historiador Henrique Carneiro iniciou sua intervenção lembrando que “o tema das drogas é hoje o que talvez cristaliza a maior carga de preconceito e controvérsia na sociedade”. “Há um senso-comum de que se trata de algo essencialmente mau, uma demonização das drogas”, aponta, esclarecendo que “as drogas são substâncias que podem ter usos positivos e negativos: há uso problemático, dependente, abusivo e violento, mas também outro polo de uso útil, necessário, positivo – de congraçamento humano, lubrificação social, celebração”.De acordo com Henrique, a história moderna é “a historia de uma serie de fluxos de drogas, que se tornaram a principal mercadoria formadora do mercado mundial”, peças chave da constituição de um mercado capitalista global, para comércio e constituição dos estados (tributação como principal fonte de arrecadação da era moderna). O Brasil é hoje o principal exportador mundial de tabaco, e além disso Henrique lembra que tabaco e café são símbolos pátrios, maiores fontes de acumulação de riquezas em nossa História. “A escravidão foi toda feita para produção de drogas, com escravos obtidos através de escambo por tabaco e aguardente”.Fica claro, portanto, que as drogas são peças-chave da historia da sociedade moderna. O historiador propõe que retomemos “aspectos da ética clássica grega e latina: uma atitude que propugnava pela temperança. O uso adequado não é a abstinência,  Voltaire afirmava que todos os excessos são condenáveis, inclusive de abstinência”.O proibicionismo é a deturpação do conceito de temperança, que passa a ser sinônimo de abstinência: “a abstinência é totalitária, propõe a erradicação de substâncias usadas há milhões de anos por diversas sociedades, o que  não só é impossível como é indesejável”, defende Henrique, que resume: “o proibicionismo é de matriz totalitária”.Henrique apontou que a “mudança de paradigma hoje em curso tem a ver com o papel econômico”, mas “tem a ver antes de tudo com a mobilização social dos interessados. Existem milhões de consumidores de drogas ilícitas que são pais de família, integrados socialmente, que estão reivindicando seus direitos, semelhante ao que aconteceu com os homossexuais ha algumas décadas”. O movimento social que vem tentando realizar a Marcha da Maconha é na opinião dele “talvez  a forma mais efetiva de modificar a realidade, e buscar um direito politico essencial para os direitos humanos. Precisamos trazer à luz do sol um debate sufocado pela via da violência, e só a mobilização social vai conquistar direitos políticos que nos foram sequestrados”, finalizou.Um debate maldito e medieval Foi então a vez de Maurídes Ribeiro, que era o único que não pertence ao NEIP. Membro do IBCCRIM, frisou a defesa da liberdade de expressão e apontou que “mais do que clandestina, a questão das drogas sempre foi marginal”, mesmo entre a esquerda: “Não era nem tocada nos debates políticos, só chegava através das artes.  Na fase de transição politica – lenta e gradual, que de tao lenta e gradual ainda não terminou – começou a surgir a tona esses temas clandestinos e ai veio a tortura , os crimes políticos, enfim, mas o debate sobre drogas permanecia marginalizado e maldito. É um debate maldito!”, define.  Maurídes recorda-se de que naquele momento pós ditadura “havia sobre o tema uma aglutinação de todos os espectros políticos com uma visão punitiva absolutamente convergente, por isso o debate permanecia maldito”.Maurídes lembra que o inicio das manifestações que contestavam isso se deu no meio estudantil, com uma manifestação em 1986, no Teatro Municipal, acabando com todo mundo preso. “Esse debate até hoje permanece com esse estigma, com essa questão pesando, a marginalidade”.Maurídes questiona: “Por que essas manifestações anda hoje são reprimidas, especialmente a Marcha da Maconha, que é uma manifestação legitima que busca a modificação de uma legislação ultrapassada? É uma questão do livre trânsito das ideias, liberdade de manifestação é da essência da própria democracia”.Para Edward MacRae, seguimos lidando com a questão de uma maneira “medieval”: “a resolução é elimina-los fisicamente. Além do Glauco, lá em Salvador todo fim de semana é publicado o numero de assassinatos, geralmente uns 15 por fim de semana. É um genocídio, que recebe pequenas manchetes”, aponta, lembrando também das cerca de 80 mil pessoas encarceradas por tráfico: “continuamos a tratar os usuários como se tratava as feiticeiras na Idade Média”.“A postura proibicionista se apresenta como inquestionável” critica MacRae. “A forma como se esta cobrindo o caso do Glauco é absolutamente vergonhosa. Falta de sensibilidade da imprensa é total, raramente ela atingiu um ponto tão baixo. Eles estão tirando o foco da questão: a facilidade que se tem de conseguir armas”.A questão da droga tem sido historicamente usada para desviar o foco, explica MacRae, “para se fazer uma cortina de fumaça”.”A forma de usar politicamente a questão das drogas foi usada pelos EUA em todo seu crescimento no palco internacional”. Ele lembra que o uso dos mais variados tipos de substâncias psicoativos é milenar e devemos lidar com ele “da forma como sempre se lidou, da forma cultural”, que inclusive estabelece sanções sociais informais para os abusos. “A forma de lidar com as drogas é encarar de frente. Através de dialogo você pode influenciar a cultura da droga, o saber que se acumula em torno do uso dessas substancias, que são usadas coletivamente, seguindo regras. Vamos conversar com os usuários, com seus grupos”, proclama o antropólogo, que ressalta:. “se você vai respeitar o usuário você tem que respeitar seu uso, então temos q pensar em termos de auto-cultivo, de cooperativas. Proponho tolerância e dialogo e não tentar enxugar gelo”.O debate terminou com Gê, pesquisador de ciências da religião e da relação entre religião e psicoativos, lendo homenagem do NEIP ao cartunista Glauco, chamada “A outra face de Glauco Vilas Boas”.  Quem compareceu, certamente saiu de lá com sua razão muito menos entorpecida, processo que sem dúvida alguma será aprofundado após a leitura do livro lançado, que foi distribuído e está disponível para download gratuito na Internet.

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