Reportagem do Correio da Bahia sobre a Ayahuasca
Publicada originalmente aqui, em 17/06/2007.
"Chá para almas
Com utilização autorizada para fins ritualísticos, o ayahuasca estimula o autoconhecimento e o aprendizado
Por Mariana Rios
Do coração da Amazônia brotam as insígnias e da mente dos homens, as alegorias. Ao ser apresentado ao chá ayahuasca, se prepare para ser auto-apresentado. Cipó ou corda das almas é uma das traduções possíveis para a bebida que, ao agir sobre a mente, provoca ampliações de consciência e aos homens de fé, uma comunhão com o sagrado. Fruto da união harmônica de duas espécies vegetais, o líquido marrom escuro permite ao corpo humano alcançar o inatingível. Aprendizado e autoconhecimento ofertado pela natureza.
Seus elementos vêm de uma das regiões mais impactadas do planeta. Na base deste tripé, atuam de maneira sinérgica o cipó Banisteriopsis caapi, chamado mariri ou jagube, e as folhas do arbusto Psychotria viridis, chacrona ou rainha. Apenas a conjunção de ambos coroa o chá ayahuasca. Numa cerimônia ritual, aos talos macerados do cipó reúnem-se as folhas. Ordenados numa grande panela, cipó e folha são dispostos em camadas alternadas. Água é acrescentada e juntos são cozidos sob o fogo constante. Três religiões brasileiras, com origem no Norte do país, utilizam o chá como sacramento.As depurações filtram a seiva, que pode se revelar doce ou amarga. Segure firme no copo, plástico ou de vidro, faça sua oração interior pedindo força e luz, e que Deus nos guie.
Ao virar na boca, e com apenas um gole, forçar a sua descida ao corpo, o rosto contrai. A boca não acredita naquele gosto, que parece testar até onde suportamos sua adstringência. O retorno para cadeira – a depender da sessão ou seita, pode-se permanecer em pé, bailar e cantar – é aceitação, uma renúncia ao gosto prazeroso. A música irá embalar, as chamadas, hinos ou cânticos serão antes como uma permissão para adentrar na sala de espelhos. Preste atenção, você irá se apresentar. Se o salão estiver repleto de raiva, solidão, angústia, os cacos de vidros destes sentimentos que repartem e cortam serão expulsos. Não se assuste. A limpeza é necessária.
O encontro, defende-se, há de ser amoroso. O chá, repete-se, é inofensivo, não causa mal algum, apenas revela o que nos causamos. Famílias de adeptos fazem uso regular há mais de 30 anos, mães bebem na gestação e mesmo na hora do parto, crianças também o fazem, e expressam na careta o ato corajoso. A única restrição é para pessoas com histórico de transtornos mentais. Estima-se que mais de dez mil pessoas utilizem o chá no Brasil e outras centenas estão espalhadas pelo mundo.
Descrever a experiência, significá-la com palavras, dotá-las de símbolos, é como, em vão, tentar falar sobre um cheiro – ou como a apresentação do cardápio no lugar da refeição. Talvez recorrer ao escritor e agnóstico Aldous Huxley ajude. Numa radiosa manhã de maio, ele experimentou a mescalina, e teve uma visão sacramental da realidade: o mundo se tornara animado por uma luz interior, “e era infinito em sua importância”.
Assim como o peiote da Igreja Nativa Norte-Americana, cacto de onde se extrai a mescalina, quase todas as culturas primitivas do planeta empregaram uma classe de plantas que provocam transe ou alterações de consciência. “O impulso para superar a personalidade autoconsciente é um anseio capital da alma”, escreveu Huxley em As portas da percepção, que inspirou o cantor e poeta Jim Morrison a criar, na Califórnia, o grupo The Doors.
O transe é próprio das diversas tradições religiosas e pode ser promovido por mecanismos endógenos – oração, mantra, meditação, jejuns – ou por método exógeno. Diferentemente de escapismo ou fuga da realidade, o que se pretende é uma ressignificação da existência, através de uma espécie de (re)conexão espiritual. Na incursão, o ego se revela como não sendo a sede da consciência.
Na América do Norte, o peiote; no México, o Don Juan; o cacto San Pedro na costa peruana; a coca e o borracheiro na região andina; o ópio no extremo oriente; a marihuana na antiga Pérsia; a iboga na África e ainda há registros do uso do cogumelo Claviceps purpúrea nas tradições pré-socráticas da antiga Grécia. Reforçam-se laços imemoriais que ligam a religião à ingestão de “drogas”. Estas plantas, mal compreendidas pela ciência ocidental, são chamadas alucinógenas, psicotrópicas, psicoativas, extasiantes e ilusionistas.
“A evolução cultural em todos os povos produziu um paulatino distanciamento das técnicas xamânicas e sobretudo do uso das plantas alucinógenas. Esta tendência foi levada ao extremo de considerar estas plantas como ‘tóxicas’ ou ‘diabólicas’ e seu uso proscrito em quase todo o mundo moderno”, escreveu o médico cirurgião colombiano Germán Zuluaga, em artigo compilado no livro O Uso ritual da ayahusca, organizado pelos antropólogos Beatriz Labate e Wladimyr Sena.
Zuluaga assessora um programa de recuperação da medicina e cultura tradicionais junto aos indígenas de seu país, onde assim como Bolívia, Peru, Venezuela e Equador, existe uma tradição de consumo da ayahuasca por xamãs e vegetalistas – espécie de curandeiros, cujos conhecimentos são atribuídos ao espírito de certas plantas, que desempenham o papel de professoras.
O termo alucinação ou alucinógeno, no entanto, é evitado entre antropólogos e adeptos. O argumento é de que o verbo alucinar impõe juízo de valor sobre a natureza das percepções alteradas – significa desvairar, privar do entendimento ou da razão. Por esta razão, ao tratar-se de contextos rituais prefere-se o termo enteógeno – derivada de entheos, palavra do grego antigo que significa literalmente “deus dentro”, aquilo que leva alguém a ter o divino dentro de si.
O uso ritual parece proteger o adepto de uma utilização recreativa ou descontrolada ao estruturar a experiência e modular o fluxo emocional. Esta proteção, espécie de controle social da ayahuasca, está associada à idéia de utilização coletiva, com a presença de líderes experientes, em certos espaços e com calendário específico.
“(A palavra enteógeno) era aplicada aos transes proféticos, à paixão erótica e à criação artística, assim como aos ritos religiosos onde estados místicos eram experienciados através da ingestão de substâncias que partilhavam da essência divina”, explicou o antropólogo Edward Macrae.
O psiquiatra João Carlos Dias, do Departamento de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria, é enfático: o chá contém substâncias alucinógenas (DMT presente na folha comumente chama chacrona ou rainha). Mas, ressalvou, é a favor do uso ritualístico. “Fizemos parecer solicitado pelo conselho (Conselho Nacional Antidrogas – Conad) há dois anos e somos favoráveis ao uso do chá dentro de um contexto ritualístico. Entendemos que a questão religiosa deva ser respeitada. Os fenômenos precisam ser estudados. Os alucinógenos não causam dependência, pode existir tolerância”, explicou Dias. Há tolerância quando doses cada vez maiores são necessárias para a obtenção dos efeitos observados na dosagem original.
Uma pesquisa está em andamento na Espanha, no Hospital Sant Pau, Barcelona, para averiguar se a substância causa ou não tolerância. Os relatos de usuários com mais de três décadas do chá sinalizam para o lado oposto. O cearense Raimundo Nonato Marques, 61 anos, por exemplo, chamado mestre Nonato, conta que quando começou na União do Vegetal, bebia 600ml do chá. Hoje, pouco mais de 30ml são suficientes para a borracheira – expressão traduzida como “força estranha” e que denomina a sensação causada pela força e luz do chá.
“Queremos verificar se isso ocorre com metodologia científica”, explicou, em entrevista por e-mail, o pesquisador brasileiro Rafael Guimarães dos Santos, biólogo que está em Barcelona desenvolvendo sua tese de doutorado sob a supervisão do farmacêutico catalão Jordi Ribas.
Voluntários ingerem as cápsulas feitas a partir da desidratação da ayahuasca. “A cápsula é, resumidamente, ayahuasca sem água, ou seja, a ayuahuasca que passou por um processo de desidratação. Em termos químicos, é a mesma coisa que o chá dos rituais. Mas para algumas pessoas, principalmente membros dos grupos, a cápsula pode ser vista como ‘artificial’, e o chá como ‘verdadeiro’, e isso pode influenciar na experiência da pessoa”, afirmou Rafael.
Para os adeptos das religiões que usam o chá como sacramento, no entanto, o chá é inofensivo. “Jogo futebol até hoje, não sei o que é doença, fiz check-up há pouco tempo e estou com a saúde perfeita. Não poderia estar assim se utilizasse uma ‘droga’ há 43 anos”, defende mestre Nonato, que foi jogador profissional na posição de volante.
O termo alucinógeno é outro emprego equivocado também na opinião do mestre. “Não é alucinógeno, porque não dá alucinação. O chá não lhe tira da realidade, ao contrário, o vegetal (como chama a bebida) coloca você dentro de sua consciência. Pode ser alucinógeno para a sociedade científica”. "
Para entrar em contato com Mariana: mrios@correiodabahia.com.br