Reportagem "Proibição das drogas: é permitido discutir"

Publicado no site da Comunidade Segura, dia 04/12/2006, em http://www.comunidadesegura.org/?q=pt/node/31124

Por Aline Gatto Boueri

"Que efeitos a repressão ao comércio, circulação, uso, plantio ou produção de determinadas substâncias pode ter sobre os índices de violência? Para os partidários do proibicionismo, historicamente defendido pelas autoridades norte-americanas e aplicado também no Brasil, a repressão contribui para a redução da criminalidade.

A política proibicionista em relação às drogas no Brasil e, principalmente, políticas alternativas a ela foram debatidas durante a mesa redonda “Alternativa para políticas de drogas”, realizada pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip) no prédio de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (FFLCH - USP).

Para a mediadora do debate, Bia Labate, doutoranda em Antropologia Social pela Unicamp, pensar a questão das drogas sob o ponto de vista das Ciências Humanas é um dos maiores desafios do Neip. “Negros, mulheres e homossexuais, por exemplo, já têm hoje seus direitos defendidos. O usuário de drogas continua sendo uma espécie de tabu, como se não tivesse nenhuma relação com as ciências humanas”, lamenta.

Proibição das drogas tem raízes morais

“É um direito humano decidir que droga consumir. Cabe ao Estado apenas garantir que a escolha não interfira no direito alheio”, defende Henrique Carneiro, professor do Departamento de História da USP. Para ele, o proibicionismo tem raízes religiosas que desrespeitam a autodeterminação humana e o direito à livre escolha.

O critério utilizado por legisladores para definir que drogas são consideradas lícitas também foi questionado durante o debate. Segundo Carneiro, ele é base para a institucionalização da discriminação cultural de povos nativos do Brasil. “O cristianismo tem papel importante na determinação do álcool como droga lícita e das plantas ameríndias como ilícitas”, afirma.

Para Thiago Rodrigues, professor do Departamento de Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o discurso médico-sanitário deu seqüência ao perfil discriminatório das motivações proibicionistas, que demoniza determinadas drogas e trata o usuário como vítima: “Sob o disfarce do laico, o discurso médico-sanitário camufla a intenção moral contida nele”, critica.

Na opinião de Maria Lucia Karam, juíza aposentada e coordenadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) no Rio de Janeiro, a despeito de suas intenções, o argumento da proibição como forma de proteção à saúde pública se mostra falho. “A proibição impede o uso responsável e higiênico da droga e o controle de qualidade por parte de organismos responsáveis”, alerta a juíza, para quem tabu em torno do uso dessas substâncias impede a criação de políticas efetivas para a redução de danos.

Tráfico de drogas atinge a sociedade de forma desigual

Nos grandes centros urbanos brasileiros, a venda de drogas de maior circulação, como a cocaína, o crack e a maconha, é mais visível em comunidades economicamente prejudicadas. Por conseqüência, afeta também com maior crueldade as populações que habitam o entorno dos pontos de venda, onde há grande presença de armas de fogo, ou seja, favelas e periferias.

A proibição das drogas, segundo Rodrigues, é também uma estratégia de controle social desigual, onde a repressão tem um foco específico. “Além do aprisionamento primordial de negros e pobres, há os que não estão formalmente presos, mas confinados a determinados territórios em função da violência gerada pela proibição”, lembra o professor.

Segundo Mauricio Fiore, doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp/Neip, há atualmente 45 mil presos por tráfico de drogas no Brasil, 18 mil deles no estado de São Paulo. “Essas pessoas superlotam presídios por vender substâncias, algo que obedece a leis econômicas de oferta e demanda”, acrescenta.

Nova lei, velhos parâmetros

Apesar de a mesa redonda ter sido elaborada antes da promulgação do novo Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), os palestrantes falaram sobre a nova lei e foram unânimes ao reconhecer que os alegados avanços trazidos por ela nada mais são que a perpetuação de antigos modelos repressivos.

“O Sisnad não traz alterações substanciais, é apenas mais uma lei que reproduz mecanismos proibicionistas”, afirma Maria Lucia. Segundo a juíza, o aumento da pena mínima para tráfico de drogas, que passou de três para cinco anos, é reflexo do caráter repressivo da nova lei. “Além disso, a lei atribui penas maiores para reincidentes, o que caracteriza dupla punição para o mesmo fato e confere caráter inconstitucional à lei”, completa.

Para Rodrigues, ao flexibilizar os critérios de definição de que quantidade da substância poderia ser para consumo próprio e o que caracterizaria tráfico, o Sisnad coloca a cargo da polícia ostensiva a decisão de abrir ou não um processo judicial, permitindo que o policial escolha quem será liberado e quem será encaminhado à Justiça. “A nova lei de drogas legaliza a seletividade de sua aplicação”, conclui Rodrigues, cuja opinião é compartilhada por Fiore: “Quem define inicialmente se o indivíduo é traficante ou usuário ainda é o policial”, lamenta.

Em outros sites:

Áudio do debate Alternativa para políticas de drogas

Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip)"

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