Violência Sexual e Políticas de Gênero no Campo Ayahuasqueiro: Uma perspectiva brasileira

Ana Gretel Echazú Böschemeier. Professora Adjunta do Departamento de Antropologia/UFRN. Atua nas áreas de gênero, raça-etnicidade e saúde coletiva. Integra os núcleos de estudo NESC e NEIP.

Camila de Pieri Benedito. Doutoranda em sociologia pelo PPGS-UFSCar. É integrante do NEREP e do NEIP. Realiza pesquisa na intersecção de gênero e religião para o estudo da religião ayahuasqueira Santo Daime.
Em agosto deste ano uma bomba explodiu no universo da nova era: o guru brasileiro Prem Baba, líder religioso carismático que impulsionou um grandioso movimento nova era com seguidores em todo o mundo, foi acusado de assédio sexual contra duas mulheres que, por muitos anos, fizeram parte do seu círculo mais próximo de adeptos. Janderson Fernandes (nome de nascimento de Prem Baba) foi exposto por suas vítimas numa reportagem emitida pela Revista Época. Nela, foi divulgado que ele usou de sua liderança carismática para envolver as vítimas numa série de atividades sexuais, as quais Janderson chamou de um tipo especial de tratamento tântrico, que ele disse ter sido "realizado por ele e por cada mulher consensualmente".
Uma das mulheres fez a denúncia depois de passar a sofrer sérios ataques de pânico, que a fizeram recorrer a um tratamento psicológico. Seguindo a explosão das notícias, Prem Baba reconheceu publicamente seus “erros”, porém, ele os minimizou como algo que fazia “parte de seu caminho de aprendizagem”, identificando as denúncias como uma espécie de “força obscura crescendo no coração de seu povo”. Em um vídeo postado noYouTube no mês de agosto de 2018, ele se referiu às denunciantes como mulheres que sofriam de uma espécie de falha espiritual, enraizada na ganância e na dor. Dias depois, e para a surpresa dos seguidores de Janderson pelo globo, grande número de seus seguidores mais próximos e antigos rejeitaram essa versão dos acontecimentos e se manifestaram a favor das mulheres afetadas, desencadeando um êxodo maciço de pessoas filiadas a seu movimento.
O campo ayahuasqueiro no Brasil
No Brasil, as linhas ayahuasqueiras mais conhecidas são três: as tradições indígenas, as religiões ayahuasqueiras (Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha) e os centros neo-ayahuasqueiros, cada vez mais populares. Os regulamentos legais condicionam a possibilidade de entrar em uma experiência de consumo de ayahuasca em contextos especificamente religiosos. Apesar de o uso indígena por vezes extrapolar o uso religioso, dado a cosmologias e usos específicos desses povos da bebida, ele é descrito como religioso pelas leis brasileiras. Dessas três linhas, um maior número de pessoas participa dos grupos religiosos propriamente ditos.
As religiões ayahuasqueiras estão presentes no Brasil desde a década de 1930. Elas combinam diversas matrizes culturais, como indígenas, europeias e afro-brasileiras, dentro da estrutura mais ampla do cristianismo popular latino-americano. Os centros neo-ayahuasqueiros são caracterizados por um uso mais fluido e menos institucionalizado da ayahuasca, assim como por serem parte de uma espiritualidade orientada para as práticas da Nova Era. Janderson Fernandes iniciou sua carreira como líder espiritual em um desses núcleos neo-ayahuasqueiros quando, como psicoterapeuta, começou a compartilhar a ayahuasca com seus consultantes.
O campo ayahuasqueiro não indígena no Brasil é definido demograficamente pelo predomínio da classe média branca, um grupo social que também inclui pessoas com visões de mundo surpreendentemente conservadoras. Contradizendo parte do senso comum sobre o paradigma da revolução psicodélica, a imersão e a permanência dentro de contextos religiosos e terapêuticos que trabalham com a ayahuasca em contextos urbanos, parece aproximar os participantes a uma ideologia conservadora, um modelo invisível de branquetude que abrange outros sinais polidos e excludentes de pertença à uma classe mais privilegiada da sociedade.
Neste contexto, alguns líderes da UDV - que no entanto não resumem a visão de todas as pessoas ligadas ao grupo - se alinharam explicitamente com a campanha do reacionário presidente eleito Jair Bolsonaro, abrindo espaço para o apoio a valores sociais marcados pela visão da extrema direita continental. Foi assim que, em setembro deste ano, o ex-líder geral da UDV no Brasil, Raimundo Monteiro de Souza, registrou um áudio no WhatsApp chamando seus seguidores para apoiarem o candidato fascista contra uma suposta "crise moral" que estaria permeando o país.
O posicionamento não foi uma surpresa por sua falta de novidade. Algum tempo atrás, um texto institucional da UDV expressou visões de mundo também reacionárias ao publicar um código interno de regras para o grupo - que vazou na internet - que descrevia a família tradicional brasileira como a unidade básica da sociedade e os homossexuais como pessoas que estão "fora de ordem" das coisas. Também é importante lembrar que dentro deste grupo, as mulheres não podem chegar ao topo da hierarquia como líderes espirituais, pois essa posição é restrita apenas aos homens, uma regra contestada em algumas poucas ocasiões.
Sinais de alarme
A medida que o uso ritual da ayahuasca em contextos urbanos brasileiros cresce e se populariza, também crescem as denúncias, por parte de mulheres, de assédio sexual e de comportamento abusivo em contextos rituais. O número exato de casos é desconhecido, já que a maioria deles não se tornam públicos. Felizmente, esta questão está sendo cada vez mais declarada pelas participantes, por acadêmicos e ativistas, em um contexto internacional crescente de denúncia de práticas previamente silenciadas no campo ayahuasqueiro.
Neste artigo, queremos destacar a relevância estratégica de uma política de gênero em grupos religiosos em contextos contemporâneos, tornando visíveis os cenários que possibilitam abusos de todos os tipos, especialmente os de natureza sexual.
Ferramentas de análise
A complexidade do abuso e, especificamente, da agressão sexual nos círculos religiosos, tem sido estudada sob várias perspectivas (Keenan, 2011; Bottoms et al., 2015). Porém o caso é certamente mais complexo quando uma substância psicoativa é incluída no núcleo da prática religiosa. Esse é o caso da avaliação de casos de violência sexual no contexto do uso religioso da ayahuasca, que traz à tona a seguinte questão: Onde deve ser colocada a responsabilidade pelas violações? Nas plantas psicoativas, na vontade patológica de certos gurus ou nas hierarquias sexistas prevalentes nesses contextos?
A exposição de mais de duzentas denúncias, por mulheres, contra o líder espiritual João de Deus no Goiás, em dezembro de 2018, confirma os últimos pontos. Lideranças caracterizadas pelo poder carismático, hierárquico e masculino, podem ser um risco para mulheres e comunidades vulneráveis, como pessoas LGBT, pessoas deficientes, etc. Casos como esse nos fazem ver que a responsabilidade estaria mais na estrutura de gênero que abriga essas práticas do que em uma "droga" per si, que modificaria os comportamentos de algumas pessoas em detrimento de outras. No caso de João de Deus, nenhuma substância psicoativa intervém nas práticas, o que não impediu que ele fosse acusado de múltiplas formas de abuso durante o exercício de suas "curas espirituais".
Por outro lado, o abuso sexual no campo ayahuasqueiro é talvez mais delicado, envolvendo, primeiramente, uma reflexão crítica sobre o consentimento e a autonomia no contexto das relações hierárquicas e, em segundo lugar, uma reflexão sobre a influência da ayahuasca como uma substância que alteradora da consciência dentro dessa dinâmica. Existe uma tensão entre os direitos humanos coletivos, como aqueles que ostentam os grupos religiosos ayahuasqueiros, e os direitos humanos de sujeitos individuais, particularmente de mulheres, pessoas LGBT, pessoas com deficiência e outras situações de vulnerabilidade social que colocam às vítimas em situação de inferioridade a priori a respeito de seus perpetradores.
Nossa proposta é que, no Brasil, alguns grupos religiosos estão baseados em uma estrutura hierárquica e sexista em que as mulheres aparecem como sendo “essencialmente” diferentes dos homens. Isso afeta mulheres e pessoas LGBT de diferentes maneiras. Existem algumas instituições religiosas ayahuasqueiras e grupos neo-ayahuasqueiros no Brasil que tendem a perpetuar essa diferença em relação à escolha de líderes, à configuração de rituais e ao estabelecimento de genealogias de seus mestres divinos.
Seguindo cosmologias e liturgias específicas, é comum entre algumas comunidades, encontrar um forte senso de hierarquia sobre os comandantes. (É claro que há muita variação entre diferentes igrejas e organizações e estamos usando generalizações aqui para o nosso argumento.)
Sendo essencial observar a variação existente entre as diferentes igrejas e organizações, é comum que algumas instituições religiosas ayahuasqueiras fortaleçam certo sentido das hierarquias que tendam a empoderar a seus líderes masculinos. Apresentando sua liderança carismática como uma missão espiritual predestinada, as autoridades religiosas frequentemente dificultam o questionamento das suas palavras e ações. Além disso, as divisões entre homens e mulheres são fortemente baseadas em papéis tradicionais de gênero. Quando é assim, os homens são definidos como governantes ativos e as mulheres são retratadas como seres dóceis e gentis, que os seguem naturalmente.
Os grupos neo-ayahuasqueros, mesmo que geralmente procurem se diferenciar das religiões institucionalizadas, adotando uma estrutura ritual mais fluida, possuem um bom número de líderes masculinos que também tendem a assumir posições hierárquicas pautadas por papéis de gênero convencionais.
Sem uma agenda política pautada por discussões de gênero, o cenário apresentado corre o risco de se tornar mais rígido diante da crescente onda fascista que afeta todos os setores da cultura e da sociedade brasileira, desde a eleição de Jair Bolsonaro. É assim que o sexismo inerente à hierarquia interna de muitas religiões ayahuasqueiras torna-se um terreno fértil para todas as formas de abuso, especialmente do tipo sexual, em um contexto cada vez mais hostil às diferenças, reacionário e conservador.
O Estado brasileiro favorece a liberdade de expressão e organização interna dentro das religiões ayahuasqueiras como sendo parte de seu enfoque democrático e pluralista. Mas, como dentro de qualquer organização sujeita a escrutínio legal, tais princípios não deveriam comprometer a dignidade humana e os princípios de autonomia contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Apesar da importância de reconhecer e fortalecer os direitos humanos das coletividades (e inclusive dos sujeitos coletivos mais do que humanos, como a Pachamama - mãe terra, os rios e o ar), a dimensão individual relativa aos direitos humanos permanece como um aspecto fundamental na dignidade das pessoas.
A dignidade e a autonomia humanas são valores complementares que devem poder serem traduzidos aos sujeitos sociais individuais e também os coletivos. O fato de que certos grupos religiosos, por mais nobre que seja o estatuto da sua missão última, impõem sua própria perspectiva de organização, estimulando o autoritarismo de líderes individuais e obliterando a dignidade e autonomia de cada sujeito, é uma questão que merece nossa atenção enquanto intelectuais, ativistas e membros desses grupos. No que diz respeito ao lugar crítico de mulheres, comunidade LGBT e outros grupos em situação de vulnerabilidade similar, essa atenção deve ser redobrada, ampliando o apoio e a escuta de suas palavras, experiências e também depoimentos pessoais e coletivos.
Propostas
É nesse sentido que argumentamos que as várias formas de abuso, incluindo o abuso sexual, não estão ligadas a uma única prática transgressora, mas a muitas formas de opressão silenciadas, que funcionam como um espaço potencializador e propício para abusos.
Para reconhecer, refletir e mudar essa realidade, propomos algumas ações na direção da politização da agenda de atividades realizadas ao interior dos círculos ayahuasqueiros no Brasil. Em primeiro lugar, apoiamos o questionamento da autonomia cultural das práticas que ocorrem nos rituais religiosos ayahuasqueiros, entrelaçando essas experiências com dimensões não somente de gênero, mas também de raça, etnia, classe e outros conceitos que são sensíveis às diferenças sociais e culturais dentro das comunidades. Nesse sentido, argumentamos que as várias formas de abuso, incluindo o abuso sexual, não estão ligadas a uma única prática transgressora, mas a muitas formas de opressão silenciada que funcionam como catalisadores dos abusos concretos.
Em uma base mais concreta, chamamos coletivamente para a produção de materiais que discutam agressão, abuso e consentimento nos grupos ayahuasqueiros, destacando o que é e o que não é uma prática de cuidado o cura em contextos prévios ao ritual, durante o ritual e inclusive pós-rituais. Apoiamos a produção e o compartilhamento de tais recursos entre mulheres heterossexuais, bissexuais, gays e trans que participam de rituais de ayahuasca em contextos religiosos como meio de prevenção de abusos através do reconhecimento empoderador de vulnerabilidades. Recomendamos também a criação de comissões dentro das organizações ayahuasqueiras que estejam destinadas a prevenir situações de risco e receber denúncias, oferecendo um espaço para ouvir e avaliar experiências de abuso assim como de assessorar juridicamente às pessoas denunciantes, multiplicando plataformas de reclamações e reparações acessíveis à sociedade civil.
E por último, nesse contexto de acentuação da crise humana e global no marco do Antropoceno, queremos ressaltar a importância de vincular o papel da ayahuasca como uma planta companheira [companion plant] a partir da geração de formas locais, integrais e holísticas na direção da construção de práticas sustentáveis, dignas e que fortaleçam a dignidade e a autonomia das comunidades de seres.
Referências
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