Xamanismo e botânica oculta

Vera Fróes (*)

Palestra apresentada dia 17 de março de 2005. Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo. Organização Léo Artése/ Associação Lua Cheia - Pax, São Paulo, 13 a 20 de março de 2005 (**).

O Xamanismo faz parte da medicina indígena, que é diferente dos princípios da lógica e dos cinco sentidos convencionais. Nessa medicina as doenças do corpo e da alma estão intimamente ligadas. O xamanismo ligado à botânica oculta traduz uma arte espiritual de lidar com as plantas sagradas, plantas professoras, trabalhando com as forças da natureza (vento, chuva, trovão) e com os seus elementais.

O processo xamânico promove no homem uma tomada de consciência da vida, transformações a nível emocional, mental e espiritual. O conhecimento das ervas é fundamental, pois deste conhecimento dependem as receitas utilizadas no preparo; muitas vezes não é indicado para o paciente tomar uma bebida mágico-ritual, como a ayahuasca, e sim usar outras plantas e preparados como, por exemplo, pílulas de copaíba (descongestionante pulmonar) ou chá de batata-de-purga (depurativo). Quando o xamã toma a bebida, há um desdobramento de sua pessoa, que consegue através da concentração sair do próprio corpo e com a ajuda dos “espíritos auxiliares” (as plantas), vê a doença ou o problema do outro, semelhante ao efeito Kirlian.

As divindades existentes nas plantas são manipuladas com sabedoria pelo xamanismo amazônico, que conta com a maior quantidade de espécies botânicas – riqueza natural que manifesta no homem não só forças orgânicas, como espirituais. Quanto maior a quantidade de plantas auxiliares, maior é o poder do xamã. O poder das plantas vem do sol. As plantas de poder têm um aspecto comum e um incomum (formas de animais, seres inanimados, elementais).

A partir do conhecimento da natureza interna da planta é possível saber a que elemento pertence, e quais são suas propriedades.

Nesse contexto, as plantas são muito utilizadas em doenças causadas por “energias intrusas de poderes nocivos” e a extração dessas é a forma mais avançada e difícil de xamanismo. Para atrair os maus espíritos do paciente, o xamã com freqüência é obrigado a incorporar estas suas energias intrusas e, ao fazer isso, luta e sofre mais do que o próprio paciente. O xamã oferece o seu próprio eu para ajudar, se disponibilizando totalmente. É um trabalho de doação profunda que acaba estimulando o doente a lutar por sua cura. As energias intrusas podem vir a partir de desequilíbrios emocionais, irradiações de hostilidade se manifestando como dores localizadas, febres e mal estar.

O conceito de energia intrusa de Michael Harner (1), não é muito diferente do da medicina moderna ocidental referente à infecção. O tratamento não é conflitante, pois um é em estado comum de consciência e o outro em estado xamânico (alterado) de consciência.

No método de sucção, por exemplo, o xamã faz sucção de dentro do paciente tanto no plano mental, como no físico e emocional, para retirar as energias intrusas, usando plantas e canções de poder. A compreensão racional do invisível pode ser hoje explicada pela física quântica.

Para praticar a magia vegetal é necessário promover uma alquimia interior, estudo de si, sobre si e para si. A botânica oculta resgata a ciência dos antigos alquimistas que conheciam o grande poder da manipulação dos elementos e a influência que os planetas exercem sobre eles e a relação com o homem.

As plantas compreendem os segredos dos alquimistas e transmutam os elementos da natureza diariamente, transformando carbono em oxigênio, fósforo em enxofre, nitrogênio em potássio, água em ar (vapor), ar em fogo (relâmpagos), fogo em água (chuva).

As quatro correntes elementais (fogo, água, terra, ar) sustentam a vida de todo o planeta e a relação dos elementos com as plantas é que eles determinam a natureza interna da planta. Podemos dizer que a planta é o corpo físico de um ser elemental.

Uma planta do elemento Fogo terá características desse elemento: plantas quentes, não precisam de muita água, têm ações drásticas. Possuem o poder de curar as doenças mais difíceis. Ex: babosa, jagube, sálvia.

As plantas de Água são frias, úmidas, leitosas, precisam de muita água para sobreviver, e são um pouco narcóticas e anestésicas. Ex.: rainha, datura, agrião.

Plantas de Ar são aromáticas, têm sabor acidulado e grande poder curativo. Ex.: manjericão, alecrim, melissa, alfazema.

Plantas do elemento Terra possuem um aspecto melancólico, quase não se vê as sementes, escondem as suas flores, às vezes têm um odor penetrante. Ex: cavalinha, samambaia, rosa de Jericó, cogumelos.

Podemos dizer, portanto, que o conhecimento da natureza interna da planta só pode ser possível mediante a investigação do elemento a qual pertence. A meditação é um instrumento que pode nos auxiliar a obter esse conhecimento. As plantas trazem consigo sinais muitas vezes claros quanto à sua natureza.

Todos os ocultistas que trabalham com plantas sabem que é preciso manipular o seu elemental para sanar os males físicos e da alma humana doente.

Um grande exemplo da magia vegetal é o casamento do cipó jagube com a rainha. O casamento das duas correntes alquímicas opostas e complementares, fogo e água, uma não vive sem a outra. O jagube masculino, yang, luminoso, é a cobra de fogo que necessita da água, da umidade para se multiplicar. A rainha, de natureza fria, efeito sedante, liberta o fogo do cipó e assim fecundam-se gerando um novo ser, um líquido ouro: ayahuasca, que é fogo e água, masculino e feminino, ying e yang. Esse líquido de poder deve ser utilizado para o auto-conhecimento, para clarear as nossas partes desconhecidas, para desenvolver nossas percepções e para a cura.

As plantas medicinais bem podem substituir toda a parafernália bioquímica euro-americana e sanar as doenças físicas, psíquicas e espirituais da humanidade.

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(*) Vera Fróes Fernandes nasceu no Rio de Janeiro (RJ). É historiadora pela Universidade Federal do Acre (UFAC). Conviveu com índios e seringueiros na Amazônia durante dez anos, onde pesquisou o uso de plantas mágicas-rituais-medicinais por comunidades agrícolas e extrativistas. Ganhou bolsa de pesquisa do CNPq em 1982 e, um ano depois, o Prêmio Suframa de História pelo livro História do Povo Juramidam: Introdução à Cultura do Santo Daime (Manaus, Suframa, 1986). Foi diretora da Casa de Cultura do Município de Boca do Acre, Amazonas, no período de 1985/86, realizando pesquisas da flora medicinal dessa região endêmica. Entre 1994 e 1995 fez um curso de especialização em etnobotânica no National Botanical Research Institute, em Lucknow, na Índia, apresentando o paper final entitulado "Estudo Etnobotânico Comparativo entre Amazônia e India”. Produziu e apresentou o quadro “Nossas Ervas”, do programa S.M. Rural, na TV Serra Mar, no Rio de Janeiro (RJ), de 1998 a 2002. É presidente do Instituto de Cultura Amazônica com sede no Rio de Janeiro. Ministra cursos sobre plantas medicinais. Desenvolve projeto de etnobotânico patrocinado pelas Nações Unidas. Conheceu a doutrina do Santo Daime na década de 70, no Acre, e desde lá vêm pesquisando e seguindo este movimento religioso. Mora atualmente em Teresópolis (Rio de Janeiro), onde conduz cerimônias no Luz da Montanha, pequeno ponto daimista ligado ao Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (Cefluris).
vera.froes@uol.com.br

O presente texto se baseia na obra: Fróes, Vera e Rocha, Antonio. Alquimia Vegetal - como fazer sua farmácia caseira. Rio de Janeiro, Editora Nova Era/ Record, 1997.

(**) A antropóloga Bia Labate realizou uma consultoria para o evento.

(1) Harner, Michael. O Caminho do Xamã: um guia de poder e de cura. São Paulo, Editora Pensamento, 1989.

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