Artigo de líder religioso de uma das Barquinhas sobre tema da ayahusaca como patrimônio cultural
Publicado no Jornal O Rio Branco em 05 de maio de 2008, aqui.
Uso religioso da Ayahuasca é Patrimônio da Cultura Brasileira
Por Francisco Hipólito de Araújo Neto
Apesar do frio que fazia na última quarta-feira à noite, nos sentíamos bastante aquecidos e acolhidos na sede do Alto Santo, em boa companhia da Madrinha Peregrina e dos irmãos amigos daquela comunidade e da UDV, com quem comungamos de maneira harmoniosa a mesma crença no poder da luz do Daime.
A irmandade da casa de Mestre Irineu estava em festa, celebravam o aniversário do senhor Antônio Gomes, um dos primeiros seguidores do Mestre e avô da Madrinha Peregrina. Portanto, uma ocasião especial também para todos nós, que reconhecemos o valor daqueles que ajudaram os fundadores a construírem tão sublime religiosidade.
A nossa participação tinha ainda um outro motivo, o encontro do Ministro da Cultura Gilberto Gil com os representantes dos Centros que integram os três troncos fundadores das Doutrinas Ayahuasqueiras: Centro de Iluminação Cristã Luz Universal–Alto Santo, Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus–Fonte de Luz”, Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, fundados respectivamente pelos Mestres Raimundo Irineu Serra, Daniel Pereira de Mattos e José Gabriel da Costa.
Foi um encontro agradável com a presença do Governador Binho Marques, Deputada Perpétua Almeida, Deputado Edvaldo Magalhães, o amigo de longas datas professor Clodomir Monteiro, Marcos Vinicius, entre outros que prestigiaram as falas simples e explicativas, que revelaram ao Ministro o valor e a riqueza do ritual religioso com o uso da Ayahuasca, que vem sendo realizado desde tempos imemoriais pelas populações indígenas, mas que a partir da década de 30 do século passado fincou raízes na cidade de Rio Branco, mas precisamente na Vila Ivonete.
Os conteúdos das falas eram direcionados para o momento solene de entrega do documento ao Ministro, assinado pelos três representantes dos Centros originários e pelos representantes das Fundações de Cultura do Estado e do município, solicitando que, através do Iphan, instaurasse o processo de reconhecimento do uso da Ayahuasca em rituais religiosos como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira.
Esse ato teve um profundo significado para todos nós, que há décadas seguimos as doutrinas fundamentadas nos ensinamentos cristãos, auxiliados pela sensibilização que o Daime nos proporciona.
Foi à realização de um sonho que há muito tempo nos acalentava, podermos dialogar com um representante do governo brasileiro e pedirmos a ele, como disse a Deputada Perpétua Almeida, incentivadora do reconhecimento do uso ritual, que “reconheça essa cultura, essa manifestação religiosa que tem na sua matriz a floresta amazônica”.
Somos gratos a ela e ao Governador Binho Marques pelos gestos de respeito, compreensão e sensibilidade. Por reconhecerem publicamente o valor da nossa religiosidade, contribuindo e intermediando junto ao governo brasileiro pelo reconhecimento e legitimidade desse saber tradicional, que vem sendo reproduzido por homens e mulheres há quase um século no Acre, como um modo de viver e de se relacionar com o sagrado.
Estamos celebrando o acontecimento da visita do Ministro, que demonstrou simpatia, respeito e disposição. Este fato nos dá a certeza de que seremos atendidos com o merecido reconhecimento por parte do Estado brasileiro.
O resultado desse encontro me levou a recordar um outro momento, o ano de 1991, quando essas mesmas entidades formularam a Carta de Princípios, em que se comprometiam a adotar procedimentos éticos comuns em torno do uso da Ayahuasca e manterem um constante diálogo sobre as grandes questões que envolvessem o interesse das comunidades religiosas por eles representadas.
Compreendo que esse compromisso foi reafirmado, quando de forma consensual, após vários debates e de comum acordo, consideraram que era importante requerer o reconhecimento do uso da Ayahuasca junto ao governo brasileiro.
Vencida esta etapa, convido os nossos irmãos que utilizam a Ayahuasca, o Governador, a Deputada Perpétua e os bons políticos do Acre, para encamparmos uma nova batalha: libertarmos-nos da tutela do Ministério da Justiça, do Conselho Nacional Anti-Drogas, da fiscalização da Polícia Federal e principalmente do estigma que nos impuseram de sermos usuários de uma droga.
Por longas décadas temos vivido sob a vigilância da sociedade e do Ministério da Justiça, que nos observam, questionam e nos toleram. Reúnem-se em Conselhos e Câmaras para decidirem se o Daime é ou não droga. Essa é uma questão recente, uma invenção da nossa sociedade de brancos, pois entre os povos indígenas o seu uso era costume e ritualmente sagrado, por longos milênios.
A polêmica existe desde os primeiros tempos dos trabalhos das nossas Igrejas. A confirmação favorável de análises técnicas de que o Daime não é droga fez parte da luta dos nossos antecessores, que por diversas vezes tiveram que recorrer aos pareceres de órgãos responsáveis pela análise de substâncias tóxicas, como forma de defesa as perseguições ocorridas.
Em 1965, meu pai Manuel Hipólito de Araújo solicitou ao Secretário de Saúde e Serviço Social do Acre, Dr. Carlos Meixeira Afonso, que o Daime fosse analisado pelo Serviço Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. O resultado comprovou que o Daime não provocava intoxicação, o que levou o Secretário de Saúde a expedir um documento oficial, declarando não ter nenhuma objeção ao uso do Daime em ritos espirituais. Esse documento foi repassado em seguida para o conhecimento da irmandade do Alto Santo.
Continuamente as perseguições ocorriam e determinado órgão do governo era acionado e nos enquadravam em suas decisões. Na década de 60 nos submeteram ao Serviço Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, que funcionava no Rio de Janeiro. Posteriormente ao Conselho Federal de Entorpecentes–CONFEN, com um constante monitoramento da Polícia Federal e por último ao Conselho Nacional Anti-Drogas. Todos eles deliberaram pela liberação, apesar das restrições.
Somos ainda tutelados pelo Ministério da Justiça, mas precisamente pelo Conselho Nacional Anti-Drogas, que apesar das resoluções que nos favorece, não nos liberta do julgo de estarmos atrelado a um órgão que nos vigia constantemente, ao contrário de todas as outras religiões que se expressam livremente, sem sofrerem o peso da vigilância da justiça.
Não somos usuários de uma droga, mas de uma bebida sagrada que originou as nossas crenças, organizadas em um ritual religioso. Os povos originários do Brasil experimentaram e comprovaram o seu poder. Não fomos nós que inventamos o seu uso, ele existe há milênios e a sua eficácia pode ser comprovada pela persistência da sua utilização, que foi absorvida pela cultura dos brancos que deu um novo significado religioso a sua utilização.
Há muitos anos, carregamos sentidos em nossos corações o fato de sermos controlados pela justiça, Conselhos e fiscalizados pela Polícia Federal. Mesmo assim seguimos silenciosos, reafirmando com mais força as nossas crenças. Entretanto, não creio que seja esse o tratamento que devemos receber dos poderes públicos, que ao mesmo tempo em que desconfiam de nós, nos reconhecem em várias atividades que desenvolvemos.
Falando mais particularmente do nosso Centro, recebemos anualmente aproximadamente seis mil pessoas de classes e religiões distintas, que nos procuram em busca de auxílio espiritual e material. Eles confiam no trabalho que desenvolvemos. Certamente se acreditassem que somos usuários de drogas não nos levariam a sério, pois são comprovadamente pais de famílias, idosos, doentes, desenganados que semanalmente fazem o mesmo percurso até a nossa casa para receberem o atendimento que oferecemos.
Esses dados quantitativos e qualitativos foram enviados ao mesmo Ministério da Justiça, que após análise nos concedeu o Título de Utilidade Pública Federal, através da Portaria nº 1.306 de 8 de setembro de 2003.
Em 2006 recebemos a visita de um representante do Iphan interessado em conhecer a Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos, onde estão guardados os acervos históricos dos nossos trabalhos. No mesmo ano eles formalizaram um convite para inscrever a Casa de Memória no Cadastro Nacional de Museus, um projeto do Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan, em parceria com o Ministério da Cultura da Espanha, por meio da Organização dos Estados Ibero-Americanos.
Da mesma forma, o Ministério da Cultura através da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural nos concedeu o Prêmio Culturas Populares 2007–Mestre Duda 100 Anos de Frevo, pela iniciativa voltada para preservação da memória, recuperação e reprodução de conhecimentos tradicionais, especificamente o uso da Ayahuasca.
Os relatos que conhecemos sobre os Centros que comungam conosco do Daime, revelam também as suas atividades e a forte presença na história do Acre. Todos se fazem representar pelas suas lideranças religiosas e pelo conjunto da comunidade. Atuando na área da educação construindo escolas. Como parceiros do poder público auxiliam na compreensão e na busca de solução de tantas dificuldades no campo da saúde, que vai além do físico, compreendendo o ser humano como matéria e espírito.
Temos ainda uma forte característica que nos unifica, a conscientização da preservação do meio ambiente. Compreendemos que a nossa religião nasceu agraciada pela natureza, que nos forneceu duas espécies vegetais, o cipó Jagube e a Folha Rainha, que ao serem misturados a água e levados ao fogo resultam no Daime, considerada por nós, homens contemporâneos, uma bebida sagrada, bem como para os povos indígenas que a consideram há milhares de anos.
Acredito que devamos ser reconhecidos como uma cultura religiosa, manifestação espontânea de pessoas que optaram por seguir uma doutrina que norteia as suas vidas. Homens, mulheres e crianças, famílias que trabalham e estudam, são pessoas comuns que desejam antes de tudo a liberdade.
Devemos acreditar e lutar sempre pelos direitos humanos e a liberdade individual. A história nos ensina os exemplos da intolerância religiosa que deve ficar como algo do passado. É nosso dever acreditar na evolução da condição humana, na sua capacidade de conviver com as diferenças.
Acredito que se devemos está ligados a algum Ministério, que seja o da Cultura, que assiste e acompanha no Brasil as diversas manifestações do seu povo. Contribuindo para continuidade e valorização das comunidades e grupos das culturas populares. Viabilizando aos grupos tradicionais apóio para que possam levar em frente às suas atividades e a manutenção de suas expressões. Auxiliando na recuperação de conhecimentos tradicionais e incentivando a valorização dos mestres do saber tradicional.
Reafirmo o meu convite a Deputada Perpétua Almeida, ao Governador Binho Marques e a todos os que participaram dessa jornada junto ao Ministério da Cultura, para que venhamos a travar um novo debate em defesa do bom uso da Ayahuasca: a liberdade religiosa.
Francisco Hipólito de Araújo Neto
Presidente do Centro Espírita e Culto de Oração
“Casa de Jesus-Fonte de Luz” (Rio Branco-Acre)