Aspectos institucionais e religiosos da União do Vegetal

Hélio Gonçalves (*)

Apresentação na mesa redonda “Os usos da ayahuasca: aspectos religiosos, antropológicos e científicos”. Sexto Movimento pela Vida, Centro de Ensino Médio, Palmas, 25 a 28 de maio de 2005 (**).

Bom dia a todos. Inicialmente quero expressar minha alegria e satisfação de poder estar aqui a convite da Tânia Maria e também da Bia Labate. Estive aqui há três anos atrás, em 2002, neste mesmo encontro, “Qualidade de Vida”, também falando deste assunto, a União do Vegetal, a Hoasca. Naquela época, lembro, era um tema muito interessante o que as entidades, diversas religiões, faziam em prol da paz... Acho que a gente continua nesse mesmo roteiro, só que aqui congregando diversas pessoas de outros seguimentos usuários da Hoasca. E estou também feliz por reencontrar o Wilson Gonzaga, que é um amigo. Estivemos juntos bem no início da minha caminhada na União e da caminhada dele também. Para mim está sendo muito bom poder pensar nessas coisas, integrando-me mais com o trabalho que ele está realizando. E estou achando muito interessante a fala das pessoas que se pronunciaram antes de mim. Vemos que cada um traz um aspecto importante da Hoasca. Cada pessoa que conhece um pouco sabe do valor que tem. Vim aqui para falar oficialmente representando o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, para tratar a dos aspectos institucionais e religiosos da União. Vim para cá representando a instituição e minha fala se propunha a ter um caráter mais oficial, institucional. No entanto, estou vendo que a conversa está bem espontânea, estou achando muito interessante, então eu vou falar um pouquinho da minha vivência, como é que eu cheguei na União do Vegetal. Porque dessa forma acho que me contextualizo melhor com as falas que estão sendo acontecendo aqui.

Cheguei na União em 1981, era um momento importante da minha vida. Na verdade, tive a oportunidade antes de conhecer a União, em São Paulo, em 1974, quando fui convidado pela primeira vez. Na verdade, naquele tempo não estava muito interessado em conhecer um seguimento religioso que fosse diferente da linha que eu já estava seguindo, que estava estudando – porque a gente deve estar sempre estudando para poder conhecer a si mesmo e conhecer mais a vida, a vida espiritual. Pelo menos essa é a minha maneira de vivenciar esse lado que sempre teve um valor bem grande para mim. Fui criado numa família onde meu pai nos deu margens importantes de buscas. E como já tinha uma busca mais voltada para uma linha oriental, do taoísmo, do budismo – lia muito filósofos da estirpe de Huberto Rohden, o qual tive a oportunidade de conhecer. Por algum tempo, em 1974, tive a oportunidade de conviver mais de perto com Huberto Rohden, que foi uma pessoa muito importante na minha trajetória. Nessa época, fazia macrobiótica e acabei conhecendo um cidadão que era conselheiro na União do Vegetal em São Paulo, o Jovelty – não sei se o Wilson chegou a conhecê-lo – que pertencia à direção naquele tempo. Ele convidou a mim e a um amigo para participar. Mas aquela sessão não aconteceu e passou o tempo. Esse amigo meu, que é médico também, chegou a conhecer a União antes de mim. Por volta dos anos 1976, 77.

Daí por diante ele quis me trazer para União – porque ele sabia que eu tinha uma certa afinidade, que poderia gostar e me sentir bem. Foi o que aconteceu em 1981. Cheguei num momento em que eu estava em crise, assim como o Wilson contou que ele estava em crise também. As crises levam a gente para o fundo do poço. Mas se tivermos uma busca sincera, quisermos falar com Deus, como o Wilson falou agora... Muitas vezes a gente fala um tanto com Deus, e ele está falando com a gente, mas temos que estar sensíveis para escutá-lo. A diferença está aí, na percepção desse Eu Superior.

Bom, devido a minha profissão eu ficava muito numa chácara onde morava, e lá aconteceram algumas coisas interessantes. Eu fazia meditações, buscando entrar numa sintonia mais alta, nessa procura de um estado ampliado de consciência, como o nosso amigo falou no início aqui do encontro. Estava dentro de uma busca de estado ampliado de consciência e cheguei a vivenciar algumas coisas interessantes em momentos rápidos, porque um estado ampliado de consciência não é uma coisa que se consegue tão facilmente. Através da meditação é possível, através de respiração, através de yoga, através de várias técnicas, de hipnose também é possível. E através do vegetal. Quando bebi pela primeira vez senti me levar para uma dimensão, como dito anteriormente, muito bonita, onde pude me encontrar comigo mesmo, encontrar com essa luz que é o que a gente está buscando. A luz maior que a gente pode chamar de Deus, Força Superior. E esse veículo, a Hoasca, nos facilita isso, esse estado ampliado de consciência, que nós na União do Vegetal denominamos burracheira, o estado ampliado de consciência, essa força, a luz que a gente recebe.

Naquele tempo, antes de conhecer a União, um amigo me convidou, pela primeira vez, e eu dizia para ele assim: “Não estou querendo beber uma coisa de fora para entender algo de dentro”. Ainda, que, na verdade, exista tanto mistério e segredo na natureza que a gente de fato não conhece nada... Meu colega, ele lembra que minha visão, na época, era muito estreita. Continua ainda não muito larga, porque sei que tenho muita coisa para aprender... Na natureza tem muita coisa para a gente estudar, compreender, está aí para nos servir, e quando bebi a Hoasca pela primeira vez pude compreender aquele chamamento que ele estava fazendo para mim, aquele convite de amigo. Foi o Douvel, que é médico, um amigo, que até hoje está na União também. Aquele primeiro momento foi um marco na minha caminhada na vida... Faz vinte e quatro anos que estou na União e de lá para cá muita coisa tem sido acrescentada dentro da minha bagagem de ser humano, da minha bagagem de conhecimento, que é pouco, mas já serve para ter uma avaliação melhor desse mundo que a gente está vivendo. Para me situar, ter norte, para saber de onde nós viemos e para onde nós estamos indo. A nossa origem. Coisas que tenho aprendido na União e que também dou valor, como uma pérola preciosa.

Vim programado para fazer uma apresentação dos aspectos institucionais da União do Vegetal, que nós denominamos simplificadamente UDV, união dos dois vegetais, o mariri e a chacrona. Fiz um roteiro da apresentação, mas não vou repetir várias coisas que já foram ditas aqui. As pessoas que estão aqui sabem, são usuárias, conhecem as plantas, sabem do nome científico etc. A União do Vegetal tem por objetivo principal trabalhar o ser humano no sentido de desenvolver as virtudes de cada um. Virtudes morais, intelectuais, espirituais. Sobretudo as virtudes espirituais, porque esse campo, essa dimensão mais alta, é a essência da vida – reconhecendo que cada um de nós é um espírito, e que estamos aqui dentro de um processo evolutivo, cada um na sua caminhada, dando a sua contribuição.

A UDV forma uma religião de base cristã, tendo também o princípio reencarnacionista como uma das bases estruturais da sua visão religiosa, na sua forma de compreender. Então é cristã, mas reencarnacionista. E é uma entidade, uma sociedade religiosa sem distinção de credo, cor ou raça. Para quem quiser conhecer, é uma sociedade aberta, desde que haja uma ordem para poder chegar. Existem algumas normas, mas está aberta a qualquer pessoa que queira, que se interesse. Existe uma abertura. As pessoas às vezes dizem que a União do Vegetal é muito secreta. Na realidade não é bem assim, ela não chega a ser “secreta”, mas ela se coloca numa posição de ser mais “discreta” – porque a busca espiritual é uma coisa de cada um. A pessoa que chega dentro de uma busca, batendo na porta, querendo mesmo conhecer, ela tem o seu lugar, tem a sua vez, tem a sua oportunidade.

A UDV foi criada por José Gabriel da Costa, um baiano que foi para a região da Amazônia na época da guerra, ingressou como ‘soldado da borracha’ e lá se encontrou com o vegetal. Muitas pessoas conhecem essa história. Ele é para nós um guia espiritual de ampla capacidade, porque mostrou a coerência entre a teoria e a prática de vida. E criou essa União tendo como símbolo universal de fraternidade as três palavras: “Luz, Paz e Amor”, que para mim sintetizam toda a base do conhecimento mais alto. Porque onde há Luz, Paz e Amor, predomina todo o conhecimento mais alto, que é o nosso objetivo maior, ter mais Luz, mais Consciência, mais Paz no nosso coração, mais Amor. Dessa forma, nós podemos praticar a fraternidade verdadeira entre nós. Para gente chegar nisso, naturalmente, tem uma caminhada. Dentro dos nossos documentos, da nossa doutrina, nós sabemos que nós devemos amar ao próximo como a nós mesmos para sermos merecedores de receber esse símbolo. A gente vê que a mensagem de Jesus se sintetiza aí: “Devemos amar ao próximo como a nós mesmos”. A mensagem do Mestre Gabriel é a mesma, está contextualizada dentro desse mesmo rumo, nesse mesmo sentido. A gente vê aí uma Justiça, porque amar o próximo como a si mesmo... Dentro disso, tem que ter autoconhecimento, ter amor a si mesmo para poder ter amor ao próximo. E, tendo isso, somos merecedores de receber mais Luz, mais Paz, mais Amor. Se tiver essa justiça com Amor estamos na linha do Mestre. Devemos escutar esse Deus maior que está sempre aí.

A Hoasca para nós é um sacramento religioso, e nós defendemos o uso exclusivamente ritualístico. A posição da União do Vegetal tem sido a da defesa institucional de que devemos buscar no esclarecimento perante a opinião pública, perante as autoridades do país, principalmente – porque são os dirigentes – que nós não usamos o vegetal para fins de recreação, mas sim como um sacramento religioso, buscando paz no coração. O Mestre Gabriel criou essa União, a União do Vegetal, também com o objetivo de trazer a paz para o mundo, mas para se chegar a essa Paz é necessário chegar a paz em cada um, em cada ser humano, cada pessoa podendo estabelecer um vínculo de paz com o seu semelhante.

Em nossa busca de esclarecimentos com as autoridades, nós temos trabalhado através de departamentos. Nós temos uma organização administrativa em cada núcleo e temos uma organização em termos de departamentos. Estou aqui representando o Departamento Médico-Científico da União, sou atualmente diretor desse departamento – a gente tem todo um esforço no sentido de encontrar e de dar mais subsídios e esclarecimentos sobe a Hoasca. Ela não pode ser resumida simplesmente em dimetiltriptamina e Banisteriopsis caapi e nas ß-carbolinas harmina, harmalina e tetrahidroharmina, que são as substâncias encontradas no chá. Nós sabemos que o chá é muito mais do que isso, que o chá é misterioso. Tanto é misterioso que se a gente reúne algumas pessoas para beber o vegetal pela primeira vez e damos a mesma quantidade de vegetal para dez, vinte pessoas e, às vezes, têm um ou dois que não sentem absolutamente nada, enquanto outros entram em um temporal de burracheira (ou seja, sentem o efeito), entram em contato com coisas de si mesmos, com seu Ser Superior, com coisas maravilhosas. Nós não podemos reduzir o vegetal a uma visão simplesmente bioquímica.

A União do Vegetal deu subsídios para que os pesquisadores realizassem uma pesquisa inédita, “A farmacologia humana da hoasca”, que nos deu ferramentas de compreensão científica sobre a Hoasca e seus efeitos – embora eu não considere este tipo de estudo os mais importantes. Pelo contrário, o estudo mais alto, mais bonito, é o estudo que fazemos dentro das sessões. Tem uma simplicidade aí. Achei tão bonita a cantoria feita aqui pelo nosso irmão Edmir, mostrando uma energia de simplicidade. Nós podemos nos conduzir para um plano Superior através do uso das palavras e do canto, chamando Força e Luz, um plano onde sentimos paz, serenidade, harmonia... E isso é tão importante quanto a gente sentar numa igreja e fazer uma meditação, escutar o que o padre fala – desde que ele esteja ligado em Deus, ou seja, na Força Superior.

Quando comungamos o vegetal e sentimos a luz do vegetal existe alguma coisa misteriosa... Como o Wilson falou, durante a sessão, com uma chamada, pode-se trazer a bonança para uma situação difícil. Nós sabemos disso, os usuários do vegetal sabem disso. Nós chamamos Força pela palavra, nós chamamos Luz, chamamos equilíbrio. As chamadas que o Mestre nos deixou, nos ensinou – está nos ensinando – são chamadas que nos conduzem para um equilíbrio cada vez melhor dentro da burracheira, porque nós estamos lidando com a Força. Na União, o Mestre formou o Quadro de Mestres, uma estruturação básica para que as pessoas possam usar o vegetal com responsabilidade. Com responsabilidade, com um certo conhecimento para conduzir as pessoas. Isto é importante para que não seja feito um uso simplesmente recreativo, simplesmente de curtição, porque o vegetal é uma coisa muito sagrada, de conhecimento. Vejo assim, estou falando da minha vivência. O vegetal nos traz consciência, nos conduz, conduz as pessoas a entrarem em contato com coisas que podem auxiliá-las no seu dia-a-dia, a serem pessoas que vêem no seu semelhante um irmão, a terem mais paz.

Vou ver se tenho mais alguma coisa importante para transmitir aqui nesse momento... Porque a gente teria muitas coisas para falar, mas o tempo é curto devemos respeitar isso. Nós temos também um trabalho social dentro da União. A União está hoje se expandindo por todo o Brasil. Temos quinze regiões, são mais de cento e doze unidades administrativas, que nós chamamos de “núcleos” também. E temos o título de Utilidade Pública Federal, no nível de instituição federal. Nossa Sede fica em Brasília. Por exemplo, em Goiânia temos dois Núcleos, e eu sou filiado a um núcleo de Goiânia, o núcleo Rei Inca. Lá temos também o título de Utilidade Pública, tanto Municipal como Estadual. Trabalhamos no sentido de trazer algum benefício para a comunidade. Em Goiânia, temos uma instituição ligada ao núcleo, o Lar de Maria, que também faz um trabalho de beneficência. Em São Paulo tem, em Cuiabá – onde estive recentemente fazendo uma palestra e encontrando alguns amigos – também foi inaugurada uma casa de beneficência, atendimento médico e odontológico. Em Goiânia, estamos querendo trabalhar mais no sentido de dar educação, levar conhecimento para as pessoas.

O quero dizer, finalmente, é que espero que nesse encontro possamos nos conhecer mais, porque acho que é um momento de confraternização entre nós, onde a busca é a mesma. A busca de luz, a busca de encontrar com o Mestre, a busca de mais consciência para nossas vidas – que é o que desejo para cada pessoa que está participando deste encontro. Pessoas que estou achando muito interessante conhecer, estou conhecendo vocês pela primeira vez. Quero desejar a todos: saúde em primeiro lugar; Luz, Luz na Consciência, Paz e Amor. À tarde, quem quiser vir aqui, estaremos falando mais alguma coisa a respeito desta instituição. Grato pela atenção de vocês.

(Aplausos)

Apresentação transcrita pelo biólogo Rafael Guimarães dos Santos, estudioso das religiões ayahuasqueiras (banisteria@pop.com.br), editada por Alexandre C. Varella, historiador e membro do Núcleo São Cosmo e São Damião da UDV em Quatro Barras (região metropolitana de Curitiba) (alevarell@yahoo.com) e depois submetida à apreciação do autor.

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(*) Helio Gonçalves nasceu em Goiânia em 14 de janeiro de 1950. Formou-se em medicina em 1974 pela Faculdade de Medicina e Cirurgia de Uberlândia, que hoje pertence à Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente é especialista em Homeopatia. Trabalha nesta especialidade no Hospital de Medicina Alternativa em Goiânia há aproximadamente 15 anos. Fez cursos de Medicina Ayurvédica e Acupuntura. Em 16 janeiro de 1981 conheceu a União do Vegetal, e chegou ao quadro de mestres em 1º de maio de 1984. Atualmente, faz parte do quadro de mestres do Núcleo Rei Inca em Goiânia (GO) e é diretor do DEMEC, o Departamento de Estudos Médicos Científicos da UDV.

(**) A antropóloga Bia Labate prestou uma consultoria para o Sexto Movimento pela Vida para a organização desta mesa redonda, composta por:
Mediadora: Bia Labate – antropóloga – (SP) (bia_labate@yahoo.com.br)
1.Ovídio Octavio Pamplona Lobato – médico neurologista - (PA) (ipadma1@ig.com.br)
2. Edmir Oliveira – Dirigente da Barquinha – (DF) (edmiroliveira@ibest.com.br)
4. Helio Gonçalves – médico e dirigente da UDV – (GO) (demec@udv.org.br)
3. Wilson Gonzaga - médico psiquiatra e dirigente da ABLUSA - Associação Beneficente Luz de Salomão - (SP) (wgonzaga@institutohermes.com.br)
5. Paulo Roberto Souza e Silva – Dirigente do Santo Daime – (RJ) (ceflusmme@aol.com)
6. Rogério Moacir Cunha – dirigente da Escola de Comunhão da Ayahuasca Mística Universal (TO) (rogemcunha@yahoo.com.br)
7. Leopardo Yawabane Huni Kuin – estudante do nishi- pae (ayahuasca) Huni Kuin (Kaxinawá) - (AC/SP) (yawabane@terra.com.br)

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