O que nos ensina o San Pedro? O que nos ensina a folha de coca?
Palestra promovida pelo Alto das Estrelas, São Paulo (SP), 20 de maio de 2005 (2)
Vou falar aqui do xamanismo, especialmente com referência à coca e ao San Pedro. Porque estas duas plantas especificamente? Porque são bem diferentes entre si: a coca é um estimulante, e o San Pedro contém mescalina, é um alucinógeno. São relativamente pouco conhecidas aqui no Brasil, embora ambas sejam do continente sul-americano. Fora os aspectos botânicos e antropológicos do uso destas duas plantas, tenho também um interesse teórico, digamos mais geral, sobre como a sociedade humana pode conviver com as plantas psicoativas, e especialmente sobre o que estas plantas têm para nos ensinar.
Vou falar primeiro da coca. Para mim, tem sido sempre um pouco surpreendente o pouco que se conhece sobre a coca no Brasil. Tentei levantar essa questão em várias ocasiões no Conselho Estadual de Entorpecentes aqui em São Paulo, mas as pessoas nunca me levavam muito a sério. Devemos destacar, hoje e sempre, que dentro do Brasil existe sim uma área de consumo tradicional da folha de coca, que é no Alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia, e ao redor da cidade de Tefé no Rio Solimões, no estado de Amazonas. Nessa região, a coca é conhecida como ipadu, padu, patu, e outras variantes. É um uso que existe não só entre grupos propriamente indígenas, mas até por pessoas chamadas na região caboclos – de raça miscigenada, que falam só português, e que não vivem dentro das áreas indígenas reconhecidas pelo Estado. Mas não tenho observado em nenhum dos órgãos que tratam da questão de drogas aqui no Brasil um interesse em levantar a questão do uso tradicional da folha de coca. Sendo algo que existe dentro do território brasileiro, o Brasil - tanto quanto a Colômbia, o Peru, a Bolívia, a Argentina e o Chile - poderia, se quisesse, reivindicar nos Fóruns internacionais o direito ao uso tradicional da folha de coca.
Hoje em dia este direito é reconhecido até dentro das convenções das Nações Unidas. O artigo 14, incluído devido à insistência do governo boliviano quando as convenções foram reescritas em 1988, reconhece o direito de consumo não só para os povos indígenas, mas para qualquer pessoa nas áreas onde exista uma tradição histórica de uso da folha de coca. Em vez de defender este direito, no Brasil, o que a gente vê com relação à política sobre coca, e “drogas” em geral, são esquemas basicamente importados, mentalidades de certa forma colonizadas.
O PT atualmente, por exemplo, está investindo forte na idéia de uma maior repressão na fronteira, tipo “a gente tem que acabar com esses bandidos colombianos que estão atravessando a fronteira e vindo vender cocaína no Brasil!”. E o PT com isso está desenvolvendo um jogo de cintura bonito com as Forças Armadas para que os generais, a aeronáutica e os batalhões da selva continuem construindo suas bases, ocupando a Amazônia e dando emprego para o pessoal militar. Então, de alguma maneira, a lógica de controlar a coca na fronteira está seguindo no rastro da lógica de reprimir o comunismo quarenta anos atrás, ou seja, dentro da mesma mentalidade de “segurança nacional”. Dentro desta visão, a coca é um elemento exótico, estranho, estrangeiro, que vem daqueles distantes países andinos, considerados “instáveis” e “perigosos”.
Por outro lado, a política brasileira com relação às drogas caminha também para o que se chama a “redução dos danos”, que é um modelo importado da Europa para tratar o usuário problemático nas grandes cidades. Tanto aqui como na Europa, a redução de danos é, a meu ver, uma postura progressista frente às políticas de repressão dura, que rezam “vamos pôr todo mundo na cadeia”. A redução de danos pelo menos contempla a idéia de que o usuário é uma pessoa, que requer alguma ajuda, que deve ser tratado como um doente e não como um criminoso. Mas mesmo assim, a redução de danos é uma visão extremamente negativista: a concepção no fundo é que você está usando uma substância ilícita e problemática, e o único objetivo do Estado nessa jogada toda é de reduzir o dano que essa substância pode produzir para o indivíduo e para o corpo social.
E dentro dessa visão a coca só pode ser ruim, não é? Não vejo nenhum grupo que atua na redução de danos entre usuários de crack na crackolância, no centro de São Paulo, dizendo que deveríamos ter um projeto para ensinar essas pessoas a usar a folha de coca adequadamente. Não vejo nenhum interesse por parte dos Conselhos de Entorpecentes de tentar difundir a possibilidade de um uso positivo da folha de coca. A gente vê sempre a coca no Brasil como uma coisa que tem que ser controlada, quer dizer proibida – em vez de uma planta que deveria ser abraçada, amada, entendida...
Em todas as sociedades onde a coca é utilizada ela é vista como uma planta de saber, uma planta de poder, um elemento altamente positivo. Se você for para a Bolívia verá as velhinhas, as avós dando chazinho de coca para os seus netos de três anos quando eles têm uma dor de barriga. Eles não consideram a coca como sendo uma planta problemática. Ao contrário, a coca é considerada uma planta que tem muito a dar e muito a ensinar.
Agora, a maneira através da qual a coca é vista de forma positiva varia muito. Não há uma única cultura com relação à folha de coca. Na cultura dos Andes Centrais, a cultura quéchua, aymara, a coca é vista essencialmente como um importante elemento da sociabilidade. Quando as pessoas se encontram, trocam folhas de coca, oferecem folhas de coca, recebem folhas de coca. É como você em certos contextos no Brasil oferecer um cigarro, ou um cafezinho, ou uma pinga. É o que você troca com as pessoas. Além disso, é um grande elemento no trabalho. O trabalho é quase inconcebível sem a folha de coca. Para as mulheres, é muito importante no parto. Quase nenhuma mulher na região central andina enfrentaria um parto sem ter folha de coca. É um elemento importante dos sistemas de adivinhação. Cada vez que há algum problema social, cultural, psicológico ou médico, as pessoas consultam alguém que lê folhas de coca. E é especialmente importante na relação com o meio ambiente. Cada vez que você vai pôr folhas de coca na boca você reza para as wakas dos morros, do lugar onde você está e do lugar de onde você veio. Você faz uma prece antes de pôr as folhas de coca na boca. Então, como se vê, a coca é um elemento de integração entre o homem e o meio-ambiente.
No sistema que estudei no livro Mama Coca (Londres, Hassle Free Press, 1978), no sul da Colômbia, num grupo étnico que se chama Paez ou Nasa, era um pouco diferente. Também tem esse elemento de sociabilidade, de acompanhar o trabalho, mas o sistema de adivinhação é completamente diferente. Em vez de se jogar folhas de coca em cima de um pano, como se faz nos Andes Centrais, a pessoa mastiga a coca e fica sentada num lugar ao ar livre, de noite. Fica mastigando, mastigando... e aí o corpo dá uns “brincos” involuntários nos músculos, nas pernas, na cara, ou nos braços. Eles interpretam os movimentos repentinos do corpo como indicações de algo que vai acontecer, ou algo que explica uma doença ou uma situação qualquer.
A coca naquela região também é muito utilizada para a limpeza de lugares. Você pega umas folhas de coca assim na boca, com um pouco de pinga, um pouco de fumo, e schhhhh! sopla – a palavra em espanhol é soplar (assoprar). É usado para a limpeza de casas, de camas de pessoas doentes, de lugares que vão ser cultivados, de pontes, de qualquer lugar que tem algum perigo ou alguma impureza, alguma coisa liminar. Você limpa estes espaços através do uso ritual de folhas de coca.
Na Sierra Nevada de Santa Marta, que é a região mais ao norte onde se usa a folha de coca, no litoral do Caribe, no extremo norte da Colômbia, também tem essa dimensão de sociabilidade, de trabalho, mas é visto especialmente como um elemento que controla o desejo sexual, a atividade ou tesão sexual. E os homens – a cultura religiosa, com o uso da coca, é mais ou menos um monopólio dos homens – são ensinados a tentar sublimar as suas vontades de sexo através do uso de coca. Seria quase como um substituto do sexo, e dessa maneira uma coisa que controla a sociedade, e evita maiores loucuras. É base de um sistema de estoicismo, uma forma de superar as frustrações. Essa é uma particularidade do uso da coca na Sierra Nevada.
Depois, na zona amazônica propriamente dita, que é a parte que chega ao Brasil, no Alto Rio Negro, e na zona de fronteira ao redor de Letícia, há dois grandes grupos étnicos – os grupos de língua Tucano e os grupos de língua Huitoto – que usam a coca associada ao tabaco. E eles usam-na especialmente de noite, para conversar. Para eles, a idéia é que você não pode conversar sem coca. A coca é quem manda a palavra, que te ajuda a falar direito, que te ajuda inclusive a recitar os mitos. Então tem uma função muito importante em relembrar e renovar os mitos, que são à base do entendimento do universo dentro dessas sociedades.
Fora estes contextos, que são os contextos tradicionais do uso da folha de coca, tem um novo aspecto que é a importância simbólica da coca nos ambientes propriamente modernos. O grande lema, por exemplo, dos produtores de coca na Bolívia e no Peru é que “coca no es cocaína”. Eles querem que seja muito claramente identificado e reconhecido pela comunidade internacional que as políticas que são dirigidas a controlar a cocaína não tem nenhuma aplicação real à folha de coca. “A folha de coca é uma coisa considerada boa e sã e a cocaína é um produto ilegal que produz certos tipos de problemas políticos, econômicos, sociais, psicológicos, e as duas coisas não podem ser postas no mesmo saco”. A coca tem aí uma função muito importante numa reafirmação, digamos, de um patrimônio nacional frente às campanhas de satanização da planta, e tem uma grande importância na resistência política e na continuidade cultural. Uma resistência ao projeto colonialista que agora vem com a lógica da guerra às drogas, que teve um impacto muito forte nos últimos vinte ou trinta anos tanto na Bolívia como no Peru. Nestes países, a consciência histórica de todo um povo está sendo alterada nos anos em que nós estamos vivendo devido à perseguição contra à coca.
Quando fui pela primeira vez para lá há trinta anos atrás, ao falar para alguém que a coca podia ser um problema, eles te olhavam assim, “esse cara está louco”. Mas hoje em dia tem outdoors enormes em toda Lima dizendo “Lá coca también tiene sus frutos: delincuencia, corrupción, drogadicción, violencia”. Estão tratando de martelar a idéia de que a coca é ruim, é ruim, é ruim. Em reação à isso, defendo o lema nacionalista, há “coca no és cocaína”; e depois, defendo também a idéia dos produtores cocaleros está o argumento de uma industrialização benéfica. Eles estão produzindo farinha de coca, extratos de harina de coca. Coca em várias formas que não são as formas tradicionais, mas que estão pouco a pouco conquistando certo tipo de mercado e estão dando uma outra imagem a esta planta.
Este aspecto da função simbólica da coca como uma resposta contra a guerra às drogas está sendo especialmente desenvolvido na Colômbia, onde justamente esta empreitada anticoca está no seu estágio mais avançado. No ano passado (2004) erradicaram ou fumigaram com glifosato nada menos do que cento e trinta e três mil hectares de plantações de coca. Aí, realmente, a guerra às drogas não é uma retórica, é uma guerra de verdade. Uma guerra com bala, com helicóptero, metralhadora. Na Colômbia a folha de coca está sendo levantada como uma bandeira de reconciliação nacional. “Vamos acabar com esse absurdo. Nós estamos nos matando. Para quê?”
Até no Equador, que é um país onde o uso da coca desapareceu faz duzentos anos, os movimentos indígenas agora estão reclamando, estão colocando na sua bandeira que a coca devia ser re-introduzida. E estão fazendo exposições utilizando materiais arqueológicos e históricos para mostrar que no Equador também sempre houve coca e que deveria voltar a haver.
E, finalmente, tem uma variante, que é talvez a mais interessante, que é a do norte argentino. Nas províncias de Salta e Jujuy, especialmente, até a burguesia, até la gente bien, está usando a folha de coca como um símbolo de identidade regionalista, para dizer que “a gente não é de Córdoba, de Rosário, de Buenos Aires, a gente não é dos pampas. Somos andinos”. E é a única região que eu conheço atualmente nos Andes onde é de bom tom, é bem visto, você ir para o Jockey Club e tirar suas folhas de coca e por na mesa. As lojas em Salta vendem a folha de coca em várias qualidades e também uma coca despalillada. Esta é a coca mais fina, com folhinhas assim inteirinhas, e por ela você paga o dobro. O mais elegante é mascar coca despalillada.
A influência cultural da burguesia saltenha (de Salta) agora esta chegando a Tarija e Santa Cruz – cidades na Bolívia onde a classe média nunca mascou folha de coca e, além disso, via o costume como algo muito feio, uma coisa dos cholos de la sierra. Hoje em dia essa gente está mascando folha de coca – não a exemplo dos outros bolivianos, seus parceiros das terras altas, mas imitando os argentinos de Salta.
Parece que a planta, de alguma maneira, tem uma contra-estratégia às atuais políticas de erradicação. Em algum momento teve um conselheiro do presidente Reagan que falou até em species extinction, a extinção da espécie, como um objetivo político. Quer dizer, ele realmente queria que isso fosse levado a sério como alvo, argumentando que “essa espécie já deu o que tinha que dar para o mundo. É melhor mesmo que agora seja extinta”.
Então vocês imaginam a própria coca vendo que vem em cima uma política de species extinction – para sobreviver, ela tem que elaborar uma contra-estratégia. Além disso, ela é uma planta domesticada e não sobrevive em estado silvestre. Em locais que foram abandonados a planta agüenta cinco ou dez anos, mas depois de uns vinte anos a capoeira cobre e ela desaparece. Quer dizer, a coca de alguma maneira depende de nós para sobreviver. De alguma maneira, a coca está nos contando que existe aqui uma interdependência das espécies. Interdependência entre ela e nós. E está nos falando também da necessidade, eventualmente, de um conceito de democracia, de interação democrática, que vai mais além do simples ser humano. Você pode começar a pensar numa democracia que inclui e que reconhece os direitos à vida de outras espécies, de outros elementos da biosfera.
A primeira reação seria – como eu mesmo tive quando comecei a estudar esta questão – a de conceber que tem um espírito ali que está agindo, uma coisa que não é só a planta e sim o que a gente poderia chamar de Coca Mama ou Mama Coca - as expressões usadas em quéchua para explicar esse fenômeno. Mas quando comecei a estudar realmente a fundo essa questão, me dei conta que tem uma diferença mais ou menos fundamental entre o nosso conceito, que seria: “tem que ter um espírito, um espírito assim meio platônico, uma essência da coca, uma coisa que está aí por atrás da planta” e os conceitos indígenas. Nos contextos propriamente indígenas, na verdade, não existe a necessidade de um espírito nesse sentido. Os espíritos que os índios expressam são resultado de uma “transcendência situacional”. A Mama Coca não está aí nos ares, não está aí no Astral. A Mama Coca está aí onde está a coca física. Aí onde está a matéria. Então, é uma metafísica, por assim dizer, uma metafísica materialista, onde o espírito reside na coisa, e não a coisa no espírito. Eu acho isso uma premissa bem importante. Pessoalmente, foi uma das coisas mais importantes que a coca me ensinou...
Não é misticismo chamar a atenção para estas coisas, pois estamos falando de elementos que podem ser analisados cientificamente. Por exemplo, a coca tem uma especificidade botânica, tem quatro variedades de coca que não se misturam. Tem duas espécies, a Erythroxylum coca e Erythroxylum novogranatense. A Erythroxylum coca é a que se cultiva na Bolívia, no Peru, na parte que dá para a Amazônia, e ela tem a variedade ipadu, que é adaptada às condições de selva. A Erythroxylum novogranatense é cultivada na Colômbia e numa pequena região da serra norte do Peru. Então, se estamos falando de coca estamos falando de, pelo menos, quatro variedades diferentes e dentro destas variedades também tem raças geográficas locais, como a coca de Los Yungas, de La Paz, que não é a mesma que a coca de Huanaco ou de Cusco. Existe uma especificidade botânica. Tem também uma farmacologia diferenciada de seus ingredientes. A Erythroxylum novogranatense, por exemplo, tem mais alcalóides, mas menos cocaína. Tem outros alcalóides, o teor de outros alcalóides é mais alto que o do Erythroxylum coca. O teor de cocaína é um pouco mais baixo.
Tem também uma grande diferença farmacológica nas diferentes formas de preparação. A coca quando é secada e mascada em folha inteira é diferente do ipadu, que é pulverizado feito um pozinho, misturado com cinza, peneirado para se tornar mais efetivo. A coca quando consumida chupada na boca produz um efeito mais interessante do que quando tomada em forma de chá porque o que entra no estômago é destruído pelas enzimas no estômago e não chega a ser absorvido muito eficientemente. Todas estas coisas podem ser analisadas cientificamente.
Ainda falando da ciência, ainda que seja num terreno um pouco mais escorregadiço, existem também os diferentes rituais de consumo, as diferentes disciplinas sociais, as formas diversas do xamanismo, e distintos tipos de relação com o meio ambiente. Todas essas coisas são elementos que podem ser analisados e descritos cientificamente. Mas, além disso, como digo, há essa questão de como a própria planta, ela mesma, enfrenta os grandes órgãos internacionais, os governos nacionais que tratam de fazer uma política para acabar com ela, para controlá-la. No repetido fracasso das medidas anticoca, parece existir uma lógica de sobrevivência que vem da própria planta.
Aqui estamos chegando perto de um autor que me interessa muito - um colega, Eduardo Viveiros de Castro, que trabalha no Museu Nacional do Rio de Janeiro – e o que ele descreve como perspectivismo. Ele trabalhou com um grupo Tupi no médio Xingu, e estudando os xamãs encontrou a idéia de que a inteligência, vista como um sistema coerente de representações internas, não e um atributo exclusivo do ser humano. As espécies de animais, as espécies de plantas, também têm a sua lógica e até, por assim dizer, a sua forma de elaborar um projeto do futuro. Se a gente fosse capaz de assumir uma forma física alheia e pensar como uma anta ou como um macaco ou como uma planta de coca, a gente entenderia que o que nos separa não e a inteligência, e sim a diferença física de nossos corpos.
Nós temos um corpo que é diferente do corpo de uma anta. Temos um corpo que é diferente de uma folha de coca. Mas uma inteligência, um projeto para o futuro, é uma coisa que todas as espécies têm. E que, de alguma maneira, nós deveríamos reconhecer. Chamando de inteligência, chamando de espírito, chamando do que quiser, mas tem aí um projeto, um projeto de sobrevivência e de reprodução, e até de expansão. Esse projeto é comum à todas as espécies.
Por obra do perspectivismo, entendemos a importância da transformação do xamã em outros animais. É muito comum o xamã transformar-se em felino, ave, serpente, vários tipos de animais. Na verdade, não importa tanto qual o animal. O que importa aí é o princípio. No xamanismo chega-se a um estado alterado onde você consegue, mesmo que seja só por alguns segundos, por alguns momentos, ver o mundo como ele é percebido por uma outra espécie. Você sai dessa perspectiva exclusivamente humana que temos a maior parte do tempo.
É assim que podemos sair de uma lógica antropocêntrica e entender a inteligência da coca, e ainda chegar a considerá-la uma planta maestra, como se diz em espanhol, uma planta que ensina. O objetivo é escutar o que ela quer contar; e, já que não se trata de uma linguagem verbal, as comunicações chegam pelas vias mais diversas, de acordo com o sistema simbólico de cada um. Em alguns casos, como eu digo, é interpretar a caída das folhas de coca em cima de um pano. As pessoas são capazes de ler assim a situação em que estão, através da forma em que se distribuem as folhas. E, em outros casos, como os Nasa que estudei na Colômbia, se usa e se sente o efeito da coca dentro do seu próprio corpo. Não entendo que isso seja misticismo, no sentido que nós damos a esta palavra. Para mim, é uma forma de materialismo, um materialismo aberto ao infinito. É um materialismo aberto ao desconhecido, aos limites da percepção.
Nesse sentido, o xamanismo é uma forma de ciência sem preconceito, usando modelos transitórios que tratam de expressar verdades, mas não impor dogmas, e ainda menos eternizar as mistificações. Comecei a descobrir isso no caso da coca, mas tudo se torna mais claro ainda quando consideramos o exemplo do San Pedro, o wachuma, que é o seu nome indígena original, em quéchua. Assim como a coca, o San Pedro contém várias espécies, todos do mesmo gênero Echinopsis, que antes era Trichocereus. Têm uma espécie que está distribuída desde o Equador até Huaraz e Huanuco no centro-norte do Peru. Este é o pachanoi, o clássico San Pedro que tem sido introduzido fora de sua área nativa como planta cultivada. Tem também o peruvianus, que se caracteriza por espinhos mais compridos e fortes e ocupa a parte central dos Andes do Peru, de Lima até Cusco. Depois tem o bridgesii, que é o San Pedro mais pequeno do lago Titicaca, de La Paz e Oruro. E tem pelo menos duas outras espécies mais no sul da Bolívia e no norte da Argentina, conhecidas localmente como cardones. São portanto várias espécies.
Todas contêm mais ou menos a mesma quantidade de mescalina, 1,2% do peso da planta verde. Uma dose efetiva de mescalina se da com trezentos miligramas, então você precisa preparar duzentos e cinquenta gramas de San Pedro fresco para cada pessoa. Uma vez cozido e coado por uma peneira acaba dando mais ou menos meio litro de uma bebida verde, um pouco, vamos dizer assim, não é totalmente deliciosa para tomar – mas também não é tão ruim... Você tem que tomar bastante quantidade, porque e difícil concentrar uma dose de San Pedro em muito menos do que meio litro.
Ao contrário da coca, o que é interessante no caso do San Pedro é que não existe hoje em dia em nenhum lugar uma tradição de uso autenticamente indígena. Existe no norte do Peru e no sul do Equador muita evidência arqueológica e histórica a respeito, mas os formas que sobrevivem hoje em dia – que são vistas como tradicionais – são na verdade produto de um ambiente já mestiço. As tradições nativas se misturaram com muitos elementos cristãos, e com um pouco da magia e feitiçaria do Mediterrâneo dos séculos XVI, XVII e XVIII. Esses elementos foram incorporados dos espanhóis que aportaram nessa área na época colonial.
Ainda assim, o registro arqueológico é muito claro. Restos de San Pedro secado ao sol foram encontrados num lugar que se chama Las Aldas, um centro ceremonial na costa central do Peru, ocupado desde três ou quatro mil anos antes de Cristo. Formavam parte de um conjunto de elementos enterrados com um homem que provavelmente era um xamã. Na cultura Chavín, que é a primeira grande cultura formativa no Peru, existem muitas representações do cactus, na escultura e na cerâmica (ver http://siteantigo.neip.info/f_san.html).
É significante o uso ritual do San Pedro na costa do Peru, onde o cactus não cresce naturalmente. Seu habitat se encontra entre dois e três mil metros de altura em vales secos, e – considerando uma composição de mais de 95% água - isso explica porque o San Pedro era secado ao sol antes de ser transportado para a costa. Essa parte, relativa à preparação, é uma das que certamente mudou do uso “tradicional” para hoje, pois os curandeiros atuais do norte peruano preparam a bebida diretamente a partir da planta verde. Eles não passam por este estágio de secar. Eu e outras pessoas no Peru estamos experimentando essa técnica de secar primeiro e parece que faz uma diferença notável. Não sei se aumenta, melhora, ou purifica, mas com certeza deve alterar um pouco o efeito.
No registro arqueológico também fica muito claro uma coisa que desapareceu por completo: nos contextos originais, o San Pedro era utilizado em conjunto com a huilca, que é o paricá do Amazonas, o angico roxo aqui do interior de São Paulo, uma árvore mais ou menos enorme (Anadenanthera spp.), que dá uma semente que contém dimetiltriptaminas (assim como a ayahuasca). Fiz experiências, várias vezes, com diferentes pessoas e, efetivamente, quando você está no meio de uma viagem de San Pedro e você cheira um rapé de paricá aumenta tremendamente a parte visual da viagem. A dimetiltriptamina é um elemento muito mais visual na sua ação que a própria mescalina.
Nos usos atuais, hoje chamados “tradicionais”, no norte do Peru, eles não usam mais a huilca, embora a gente possa dizer que ela sobrevive simbolicamente. Eles têm uma coisa que chama singada, que é uma mistura de pinga com tabaco em rapé. Ela é cheirada com uma concha assim shhhh!.. pelo nariz. Queima que é uma loucura, tudo arde, é horrível. Mas “bate”. Dá um certo vôo assim na cabeça. Acredito que isso é uma sobrevivência simbólica do uso da huilca ou do paricá.
Fora a singada, o inconveniente, do meu ponto de vista, com o uso “tradicional” do San Pedro que existe atualmente no norte do Peru é o elemento de baixa bruxaria. Todos os sistemas xamânicos indígenas têm conceitos de limpeza: limpeza de lugar, do corpo, a idéia de chupar e tirar fora elementos que estão produzindo doenças, e proteger contra espíritos da natureza. A noção de limpeza como proteção é básico em quase todos os sistemas xamânicos.
Mas no caso do San Pedro isso tem sido re-trabalhado, na minha opinião, de uma forma um pouco nociva. Os curanderos dizem “todo es envidia!”, “todos os males são inveja”. Eles vêem todas as doenças, todos os problemas, como resultado de problemas interpessoais, de intrigas... E isso para mim acaba criando um sistema meio paranóico. Você está tomando o San Pedro para ver aquela pessoa que está querendo te ferrar, para depois devolver a maldade que essa pessoa está te fazendo e daí você sai raaaaa! Até ele tomar San Pedro e fazer a mesma coisa, te mandar o troco. Então você fica nesse bate bola para sempre, mandando inveja para cá e inveja para lá. Isso é um sistema fechado. Você entra dentro desse sistema e não tem muita saída.
Tanto que, mais ou menos dos anos 1960 para cá, tem surgido um pouco o que a Bia gosta de estudar, que são os “novos usos” dessas substâncias “tradicionais”. Assim como tem surgido também com a ayahuasca. Esses novos usos são mais influenciados por uma ideologia new age, são inclusive muito similares à fenômenos observados em torno do uso dos cogumelos, por exemplo. Se você compara estes novos usos do San Pedro com os cultos da ayahuasca, o que se nota e uma ausência de um ritual único e organizado ou uma disciplina rígida. Sei que muitas pessoas presentes hoje aqui são daimistas ou já passaram pelo Daime ou pela UDV, e sabem como é a disciplina nesses cultos. Com o San Pedro não tem ocorrido nada similar até o momento. Não existe uma igreja de San Pedro.
Poderíamos explicar isto de várias maneiras. Por um lado, talvez, pelos efeitos menos marcantes da mescalina no campo visual. Até tomando uma boa dose de San Pedro não dá aquelas mirações que a ayahuasca proporciona. Dá alterações e sensações, uma euforia, uma clareza na cabeça, mas as formas visuais são equilibradas e mandálicas. São coisas que têm centro. São imagens onde você pode ver o sol. Não são aqueles espirais que a ayahuasca dá e que vão acabar em curvas onde as pessoas podem se perder. Devido a esta possibilidade de se perder em cantinhos obscuros, a ayahuasca necessita talvez de mais disciplina, de um rito mais público, para manter o ritmo da sessão e não perder a corrente. No San Pedro não tem tanta necessidade disso. A pessoa pode ir “na sua” que não vai se perder. Até hoje nunca soube de ninguém que realmente passou mal com o San Pedro. Às vezes, as pessoas sentem náuseas, vomitam e tal, mas passar mal assim no sentido psicológico, enfrentar monstros, essas coisas, nunca ouvi falar disso com o San Pedro. Talvez esta seja uma das razões de não terem se desenvolvido religiões institucionalizadas em torno do uso moderno do San Pedro.
A outra razão é o que o efeito do cactus dura muito tempo. A mescalina demora umas duas horas para bater, e o efeito principal dura pelo menos seis horas, oito horas. Você só consegue dormir umas doze horas depois de ter tomado. Quer dizer, uma noite inteira com uma única dose. Você tem muito tempo para ficar observando o efeito da coisa, e isso traz uma certa calma, um sossego.
Agora, como entender nesse contexto do San Pedro a questão da inteligência da planta? Como reconhecer no San Pedro uma planta maestra? Pessoalmente, não acho que o sistema “tradicional” – que é um sistema de projetar espíritos maléficos, pequenos exus mensageiros correndo para cá e para lá fazendo maldade – é o caminho do futuro. E por isso, mesmo que eu seja antropólogo e que deveria ter um grande respeito pelos “usos tradicionais”, no caso preciso do San Pedro, não acho que o modelo do curanderos atuais vai realmente levar a muita coisa.
A outra possibilidade seria tratar de recriar o culto original de Chavín, que claramente tinha como base uma transformação felínica. Nas imagens de Chavín você vê desde caras humanas até felinos totais, em vários estágios de transformação. Fica mais ou menos claro que o objetivo do culto Chavín – tal como é o caso em vários sistemas de xamanismo que ainda existem na Amazônia – era a transformação em felino, puma ou onça ou jaguar. Este tipo de abordagem poderia ser uma das formas de avançar no tema do San Pedro. Mas uma transformação propriamente felínica – não sei se alguma pessoa aqui alguma vez teve alguma, uma sensação de estar crescendo dentes enormes e garras e pelos na mão – não sei se isso daria ibope, se todo mundo quer realmente se transformar em felino...
Talvez a forma de avançar com relação ao San Pedro seja simplesmente tratando de escutar a planta. Vendo como ela cresce, e experimentando com diferentes doses. Porque o efeito fica bem diferente de acordo com a dosagem. Uma dose não muito forte produz uma sensação de bem estar, você pode conversar com as pessoas, seria muito bom para terapia em grupo, esse tipo de coisa. Foi daí, aliás, que saiu o Ecstasy, uma modificação da mescalina com anfetamina. Este tipo de dose não tão forte seria talvez aplicável a festas, bailados e danças. Doses mais fortes seriam mais para ficar sentado ou até deitado, concentrado.
E também, como falei antes, há variações dependendo dos diferentes modos de preparação: com a planta seca, verde etc. Ultimamente tenho ouvido falar muito no Peru que se está recomendando o San Pedro em doses homeopáticas: tomar uma colher toda manhã durante semanas. Isso seria útil para o tratamento de certos problemas físicos. Já fiz isto algumas vezes: depois de uns dez, quinze dias, começa a “bater” em momentos inesperados. Você está no meio do trânsito e de repente pum!, você vê que está “batendo” o San Pedro, ou aparece algo nos seus sonhos. Esta já é outra forma de utilizar a planta, e é provavelmente uma invenção moderna. Não tenho nenhuma evidência histórica de que o San Pedro tenha sido usado dessa maneira antigamente.
Para fechar toda essa discussão devo dizer que o ritual, o investimento simbólico, a ideologia, é, para mim, uma faca de dois gumes. Por um lado, investir um significado simbólico nessas experiências é um pouco um jogo de espelho onde damos forma a uma experiência que é, originalmente, totalmente estranha. Essa experiência estranha é a ingestão das qualidades de uma outra espécie. De uma espécie que a gente não conhece ainda, e que vai conhecendo progressivamente. Quando a gente põe essa outra espécie para dentro do corpo pela primeira vez é uma experiência estranha que tem que ser interpretada. Atribuindo um investimento simbólico, tal como acontece no ritual do Daime, você disciplina aquela experiência. Mas é uma faca de dois gumes no sentido que uma vez que você dá essa forma, essa experiência sem forma desaparece... Aí você vai acabar sempre reproduzindo mais ou menos o mesmo esquema simbólico.
No caso do San Pedro, como está ocorrendo um tipo de uso não tão ritualizado, sem tanto investimento simbólico, onde a experiência não passa a ser disciplinada sempre de uma maneira certa e única, vejo que está surgindo uma abordagem um pouco mais individualista, um pouco mais independente de acordo com as expectativas de cada um. Agora, por outro lado, essa experiência pode cair no vazio. Não tendo nenhum investimento simbólico, a experiência pode ser de uma estranheza que não leva a nada. Algo como uma dor de barriga e um pouco de brilho nas cores que se vêem. Algo que não leva a muita coisa.
Na verdade, não sei onde me colocar nessa discussão. Quer dizer, vejo os dois lados da questão, a necessidade de criar um certo modelo simbólico para poder dar uma forma a esta experiência. Mas também vejo o perigo de que ao fazer isso você está eliminando outras possibilidades. Então, tendo a argumentar que deveríamos, em termos gerais, criar uma possibilidade de reconhecimento das formas bastante sutis do efeito de uma planta, respeitando-as sem discipliná-las demais. Defendo então, digamos, um “xamanismo enxuto”. Um xamanismo sem espíritos, um xamanismo até, por assim dizer, científico. Materialista, portanto. Um encontro mais ou menos direto entre nós e a planta. Seja com a coca ou com o San Pedro, ou com qualquer outra planta, o objetivo é sempre tratar de aprender o que a planta tem para ensinar, e não o que nós queremos ensinar a ela.
É isso. Obrigado.
(Aplausos)
Participação da platéia:
Depoimento de Anthony Papa (3)
Tradução simultânea por Mark (4)
A ‘Guerra às Drogas’ é um grande negócio nos Estados Unidos. As prisões estão com quinze milhões de pessoas, sendo 2,1 milhões devido ao uso das drogas... Fui preso em 1985 simplesmente porque passei adiante quatro onças, mais ou menos 100g de cocaína. fui julgado e condenado à quinze anos de prisão. Passei doze anos na cadeia. Nunca tinha sido preso antes. Fui preso por essa venda, fui à prisão, quinze anos da minha vida. Primeira vez; sem violência/ofensa. Fui para prisão e descobri meu talento como artista. E foi através da minha arte que consegui ser libertado. Pintei um auto-retrato com o nome ‘15 anos à vida inteira’. Este retrato foi parar num museu famoso dos Estados Unidos, o Whitney Museum. Assim, recebi muita publicidade sobre o meu caso. E o governador deu clemência para minha liberdade – depois de doze anos. Quando saí queria fazer alguma coisa a respeito da ‘Guerra às Drogas’. Então fundei uma organização chamada ‘Mães de Nova Iorque Desaparecidas’, baseada nas mães dos argentinos que também desapareceram. Os parentes de pessoas que estavam na prisão por uso de drogas se tornaram membros. Começamos a protestar da mesma maneira que fizeram as mães da Argentina. Fazíamos vigilâncias e muita publicidade. Passamos seis anos fazendo isto; depois de trinta e um anos as leis foram recentemente alteradas. Graças aos esforços de brigar e lutar contra esta ‘Guerra às drogas’. Continuo usando a minha arte para lutar contra esta guerra nos Estados Unidos. Vim ao Brasil para pintar e tenho um estúdio em São Carlos (interior do Estado de São Paulo). Costumo viajar entre Nova Iorque e São Paulo. Acabei de lançar um livro chamado ‘15 à vida’, contando como pintei meu caminho para a liberdade. Continuo procurando meios de colocar esse assunto para o público, envolvendo pessoas importantes, ricas, políticos poderosos. Tem um filme sendo idealizado sobre a história da minha vida. Quero tentar, com a minha arte, pintar um rosto humano e ajudar a outros a reconquistarem a sua liberdade. That’s it.
(Aplausos)
Comentário de Alexandre Varella
Posso dizer que estudo na teoria e na prática as plantas psicoativas. Interesso-me, particularmente, pelos usos tradicionais nas chamadas “grandes civilizações pré-colombianas” em análise dos relatos da época da conquista da América, tema que procurarei desenvolver no mestrado em história social na USP, sob orientação do Henrique Carneiro.
Em viagens pelo México, Peru e Bolívia tive experiências com plantas conhecidas como alucinógenas. A respeito de uma dessas aventuras gostaria de tratar, buscando contribuir com o que foi apresentado pelo Anthony, que me surpreende ao falar de uma concepção alternativa para o uso de drogas que é bem interessante. Como ele comentou, não podemos voltar para um xamanismo pré-colombiano, pois não vivemos a mesma cultura, estamos em outro contexto sócio-cultural e de desenvolvimento tecnológico. Considero que aquelas culturas ancestrais, infeliz ou felizmente, estão basicamente extintas, sem romantismos.
Então, voltando ao meu relato, tive uma experiência com o cacto San Pedro, na Bolívia, cerca de um povoado na Cordilheira Real, ao sul de La Paz. Conheci uma boliviana em La Paz - com ela e mais um amigo que viajava comigo, um francês, fomos para esse lugar após colhermos a planta e prepararmos a bebida. Esta colega boliviana de fato foi quem nos auxiliou a encontrar o cacto nos arredores de La Paz, e quem se prontificou a cozinhar em água fervente, por umas oito horas, várias fatias, se não me engano, mais de um quilograma. A gente retirou a camada superficial de troços de San Pedro, a parte verde, onde se concentra a mescalina, para fazer a cocção.
Assim, fomos para um lugar recôndito num vale entre as montanhas daquela cordilheira e foi uma experiência muito interessante, bem alternativa. Creio que é ilustrativo dessa tendência ou proposta apresentada pelo Anthony. Aliás, ele comentou sobre o “perspectivismo” na antropologia, uma teoria que tenho dificuldade de entender, talvez porque é uma perspectiva de outros seres, então, realmente, não é fácil um ser humano entender o que a planta está “pensando”. Mas enfim, é bem interessante a idéia. Imagino que as imagens cerebrais, os símbolos que aparecem durante a “alucinação”, talvez sejam algo pré-existente na mente humana. Mas ao mesmo tempo, parece que é a planta que mostra as visões, ou seja, a planta em si, sua experiência como ser, sua inteligência... quem sabe ela esteja dialogando com o ser humano nessa criação de imagens, de visões.
Naquela oportunidade, bebi dois copos do chá. Eu e as duas outras pessoas encontramos um local muito atrativo. Foi numa montanha, era meio-dia quando decidimos beber, próximo a um pequeno santuário católico, o qual talvez tenha sido colocado lá para substituir um antigo local de culto indígena. Ficamos a maior parte do tempo debaixo de uma árvore (aliás, a única árvore que havia lá), que fazia bastante sombra, e também perto de uma marca misteriosa no chão, no topo da montanha, feita pela mão do homem, que parecia indicar um ponto especial, não sabíamos para quê. Bem, praticamos uma espécie de ritual, algo solto, mas, de certa maneira, um ritual, que ia se moldando. A gente estabeleceu uma hora para beber, nos concentramos, enfim, um ritual vai se colocando no momento que a gente faz a experiência, não é mesmo? Existem certas regras que as pessoas acabam seguindo de acordo com seus critérios, mesmo que sejam subjetivos.
Quando me concentrei e, digamos assim, comecei a “viajar”, logo apareceu a imagem de um condor voando altaneiro, numa visão interior, parecia um desenho animado, em branco e preto. Também, quando olhava, através do binóculo de meu amigo, bem ao longe, mas nitidamente, o pico do famoso Illimani, conseguia ver um rosto humano claramente, que se formava sem titubeios, da formação rochosa. Meu amigo, segundo ele, também via a mesma coisa. Imagino que isto seja a visualização do Apu, a entidade mágico-religiosa que seria a “entidade” das montanhas sagradas na cultura nativa desde tempos pré-colombianos. Talvez os índios antigos tenham tido esse tipo de visão, e quem sabe, não têm até hoje mesmo?
Afinal, até que ponto estas visões são “alucinações”, loucuras da mente? Ou há uma mensagem da planta, neste sentido da perspectiva dos outros seres, das outras coisas que há no mundo, abrindo vias de comunicação, e nós mesmos, saindo da perspectiva humana? Tenho minhas dúvidas, e não sou eu que vai solucionar o enigma!
Comentário de Sandra Goulart
Sou antropóloga e estudiosa das religiões ayahuasqueiras brasileiras faz mais ou menos uns quinze anos. Tenho um trabalho de mestrado onde estudei o grupo que é mais conhecido como Santo Daime, através de uma etnografia da comunidade amazônica Mapiá, do CEFLURIS. Recentemente terminei meu doutorado, que foi um estudo comparativo entre as três principais religiões ayahuasqueiras brasileiras – o Santo Daime, a União do Vegetal e a Barquinha – e suas divisões e fragmentações internas.
O estudo das religiões ayahuasqueiras me permitiu, ao longo dos anos, travar contato com uma série de outros pesquisadores interessados no tema dos psicoativos ou das plantas de poder. Este foi o caso do próprio Anthony, a quem tive o prazer de ouvir hoje, e da Bia Labate, com quem organizei uma coletânea de artigos sobre os usos rituais de diversas plantas psicoativas.
É este meu interesse cada vez mais ampliado no tema das drogas ou plantas mágicas que me trouxe aqui, a esta palestra. Para mim é significativo perceber como o caso do consumo das folhas de coca nos Andes e em diferentes regiões da Amazônia, e o uso do cactus San Pedro no Peru, se assemelham ao fenômeno dos cultos ayahuasqueiros brasileiros e, mesmo ainda, a outros tipos de manifestações místicas, religiosas ou xamânicas, também verificados em nosso solo, como o uso do vinho da jurema pelos nossos índios ou em cultos afro-brasileiros.
Acho que estas semelhanças mostram o quanto todas essas diferentes plantas encerram um poder verdadeiro: ao contrário de serem fonte de alucinação ou alienação são elementos essenciais na construção e na fundamentação de realidades culturais, éticas, políticas e históricas.
[Henrique Carneiro] (5): Tenho duas perguntas. A primeira é se você faz alguma distinção – e, se você faz, qual é – entre a “planta” e o “princípio ativo”? Ou seja, tomar mescalina sintetizada é distinto de tomar a planta? Seria da mesma utilidade? E a segunda pergunta: nessa semana (20 de maio de 2005), houve dezenas de milhares de pessoas que foram a La Paz, sobretudo de El Alto, que é a principal região pobre, e conseguiram a aprovação da Lei dos Hidrocarbonetos, a aprovação não de uma nacionalização, mas de um aumento da taxa que vai ser paga. Aqui no Brasil a reação do governo Lula foi a pior possível, afirmando que isso afetaria o interesse da Petrobrás, que é a maior empresa existente na Bolívia. Bom, na Bolívia existe uma candidatura presidencial de uma figura importante no país que é um cocaleiro, o Evo Morales. Eles estão organizando uma marcha que está a caminho de La Paz e vai chegar segunda-feira, estão numa situação que não se sabe se o Carlos Mesa cai na próxima semana ou na seguinte. A minha pergunta é: como você avalia a possibilidade de haver uma reversão da política oficial do governo boliviano em relação à coca se existir a ascensão do Morales ou algo semelhante? E, por fim: há no Peru algum movimento similar?
[Anthony Henman] Bom, a primeira pergunta: a diferença entre a planta e seu princípio ativo: isso depende muito de cada planta. No caso da coca: se a cocaína for aplicada na mesma dosagem daquela que você obtém quando está mastigando a folha, na verdade, a diferença é mínima. Os camponeses nunca gostam quando falo disso, mas na verdade coca sim é cocaína. O lema ‘coca no es cocaína’ cientificamente é totalmente equivocado, porque o princípio ativo da coca é cocaína. A diferença está na forma em que você absorve. Então, você mastiga a folha de coca, você absorve digamos, cinqüenta miligramas... você absorve como se fosse por conta-gotas, vai entrando no sangue um miligrama por minuto. Então, o efeito é notável, mas não é muito forte. Agora, se você cheirar, injetar, ou fumar essa mesma quantidade de cocaína vai ao sangue de uma só vez. E daí o efeito é muito mais intenso. Mas, vale lembrar que folha de coca também tem outros alcalóides, vitaminas, um grande conteúdo de cálcio, vários elementos nutritivos etc – ainda que o efeito, digamos, “droga”, o efeito estimulante, vem da cocaína. Disso não há dúvida.
Tudo isto é bem mais claro ainda com os opiáceos. Os opiáceos - seja fumar ópio, comer ópio, injetar morfina, cheirar heroína – no final, dá tudo na mesma. Quer dizer, o efeito final de qualquer opiáceo é mais ou menos o mesmo. O argumento da coca e da cocaína é de que as diferenças de farmacologia produzem efeitos diferentes; o argumento dos opiáceos é ao contrário: diferentes preparações acabam por produzir o mesmo efeito no final. Ou seja, cada planta tem a sua particularidade. É muito melhor absorver cafeína através do mate e do guaraná, do chá, do café do que em cristais de cafeína que você pode pôr num copo de água e consumir puras. Ninguém faz isso porque não tem sabor, não tem interesse, mas “bate” igual. No caso da Cannabis, até hoje não surgiu realmente um mercado de canabinóides em extrato. Tentaram várias vezes, mas não dá certo. As pessoas gostam mesmo da planta em si.
Em geral, sou partidário das plantas, e isto vale especialmente para o San Pedro. Gosto das coisas integrais e tal, mas pensando bem, até que gostaria de encontrar um produto intermediário, entre o meio litro de goma de cactus, uma coisa gosmenta, e os trezentos miligramas de mescalina necessários equivalentes a uma dose de San Pedro ingerido como bebida... Deve ter alguma coisa que estaria entre os dois e que ainda seria integral, ainda teria as vitaminas, os outros alcalóides, mas sem tanta gosma que pega na garganta... Isso seria tipo um “Santo Gral” que se está buscando atualmente com o San Pedro, encontrar uma forma de preparação que torne um pouco mais fácil para o paladar e para pessoas tomarem.
[Bia Labate] (interrompendo): Posso fazer uma pergunta em cima dessa? Antes, quando você falava do perspectivismo, você estava falando do “espírito da planta”, da “inteligência da planta”. Mas agora você parece ter um enfoque mais farmacológico, falando da eficácia dos princípios ativos, da quantidade das doses, das propriedades químicas de cada espécie etc... Como juntar estas duas perspectivas? Se a planta é um ser vivo, como reduzi-la aos seus efeitos psicoativos?
[Anthony Henman] Bom, nesse sentido, sendo muito materialista: o espírito da coca está presente na cocaína, o cheiro da coca está presente. Já peguei cristais de cocaína pura, de farmácia, sem absolutamente nenhum outro produto que não a cocaína – cocaína pura, pura, pura. Você queima o cristal, sai o cheiro da planta. O cheiro é o mesmo que o da pasta básica. Ou seja, a cocaína tem o cheiro que está presente na folha e está presente também num alcalóide refinado. E esse cheiro é próximo ao que seria o espírito da planta.
[Bia Labate]: Então, quando você falou anteriormente das estratégias da planta, da inteligência da planta, você acha que isso se aplica à cocaína também?
[Anthony Henman]: Justamente... quer dizer, ao ser refinado é que está produzindo os problemas. A cocaína em forma refinada está produzindo os problemas. Então dessa maneira o espírito da planta está mostrando que não devia ser consumido dessa forma, desse jeito.
[Bia Labate]: A cocaína tem um espírito dela que nos guia para a usarmos direito?
[Anthony]: Pode ser que o espírito da coca está mostrando através dos efeitos da cocaína que ela não deveria ser usada dessa forma tão refinada. Eu diria assim. No caso dos opiáceos o argumento não é o mesmo. De alguma maneira a heroína é melhor que o ópio. A heroína é uma forma melhorada do ópio. O argumento com os opiáceos não é o mesmo. Mas no caso específico da coca/cocaína, sim, diria que efetivamente o espírito da coca está mostrando que em forma de crack, em forma de pasta básica, não leva a muita coisa...
[Bia Labate]: Obrigada. Desculpa interromper. Não sei se entendi direito, mas... Bom, se quiser, pode retomar a segunda pergunta do Henrique, sobre o Evo Morales – haveria algo análogo no Peru?
[Anthony Henman]: Não, nesse momento não. Tem vários movimentos de cocaleros no Peru, mas eles não estão unidos. O pessoal de Cusco está tratando de se unir com o pessoal do Apurimac. Eles queriam ser um bloco, mas ainda não deu certo. O pessoal do rio Huallaga é outro bloco. Depois tem uma outra variante do grupo do Huallaga, no Vale de Monzon, que são os mais radicais, eles são um outro grupo. Ou seja, tem de três a quatro tendências e cada uma tem uma postura diferente. Os de Monzon, por exemplo, são contrários a qualquer negociação com o Estado, querem a legalização absoluta de toda a coca e todos os seus derivados e não saem dessa posição. É a posição mais extrema em defesa da coca. Os outros todos estão em posições onde é possível negociar com o Estado, “vamos reduzir um pouco”, “vamos erradicar voluntariamente”, pápápápá. Outros estão em posições diversas de negociação com o Estado e com as Nações Unidas, com a embaixada dos Estados Unidos, e tal.
Na Bolívia, também existe uma diferença entre a postura do pessoal do Chapare, e o pessoal dos Yungas, e dentro dos Yungas também tem várias tendências diferentes. Agora, se o Evo Morales chegar ao poder, isso vai ser interessante. Vai ser bem interessante. O Evo Morales é o principal dirigente da oposição, é tipo o Lula de lá... Ele saiu do movimento cocalero. Isso será usado contra ele se ele chegar perto do poder. Aliás, já nas últimas eleições isso foi usado contra ele. A embaixada declarou: “se esse cara ganhar, vamos ter que rever todos os nossos acordos e todos os tratados”, ou seja, deixaram bem claro que não estavam a fim de que ele chegasse ao poder. Agora, se ele efetivamente chegar, os EUA vão ter que lidar com isso. O Evo Morales já sabe desses problemas, se você examinar bem, verá que nesse último ano ele quase não tem levantado o tema da coca. No projeto político do MAS (Movimiento al Socialismo), de agora, a questão da coca está no item número 9, bem abaixo dos hidrocarburos (hidrocorbonetos) e todo o resto. Nesse momento, não convém realmente para nenhum político falar da coca. O último que fez isso foi o presidente Paz Zamora.
No princípio dos anos 90, me convidaram para ir a La Paz, a gente montou a tal Diplomacia de la Coca, que contava com o apoio do Ministério de Relações Exteriores, do Congresso da Bolívia. Pretendíamos sair pelo mundo afora falando das bondades da folha de coca. O objetivo era tirar a folha de coca da Convenção Única da ONU, onde ela está inserida no apêndice sobre plantas entorpecentes. Se a folha de coca fosse retirada daí, acabaria com toda essa história. Mas, um país como a Bolívia – eles tinham o apoio de alguns estados asiáticos, alguns estados africanos, que na verdade estavam ali só porque queriam encher o saco dos Estados Unidos – não tem força para isto. A iniciativa diplomática não prosperou, teve uma vida curta.
E aí acho que com o Evo Morales, infelizmente, vai acabar sendo a mesma coisa. Nas grandes negociações internacionais, até para a Bolívia, a folha de coca não é o principal assunto nesse momento. Se você tem que dar um pé atrás em algum assunto então será no da coca, porque é o lugar onde você encontrará menos apoio. É muito difícil. Agora, têm lideranças mais radicais também. Essas estão justamente atacando o Evo Morales por conta disto. O pessoal dos Yungas, estive com eles numa reunião em Lima há cerca de um mês atrás. Eles falavam assim: “Evo es un bandido!” Você vê, as bases já consideram que ele está contaminado pelo poder.
[Gilberto J. Sanches]: (6) O uso das plantas de poder pode causar dependência química?
[Anthony Henman]: Tem umas duas ou três plantas que produzem dependência. A primeira é o ópio, que é uma planta que ensina muito e tem muito valor, mas se você usar ópio todo dia, depois de uns trinta dias mais ou menos você está dependente. Quer dizer, quando você para, você passa mal uns dois ou três dias. A outra planta que produz dependência é o tabaco. O pessoal que usa tabaco, em geral, passa mal quando para. Mas as outras, os alucinógenos, e outras como a maconha, não. A coca, dificilmente; ela é um hábito mais ou menos como o chá, o café, o guaraná – os estimulantes são mais ou menos substituíveis. Quando não tenho coca, tomo chimarrão, quando não tenho chimarrão, tomo café, quando não tenho café, tomo chá, quer dizer, não é uma dependência a uma planta, é uma dependência ao efeito estimulante. Algo do tipo, “preciso de um estimulante para o café da manhã”, “preciso do meu cafezinho para sair pra trabalhar”, uma espécie de “dependência genérica” a algum estimulante. Não uma dependência específica a uma planta, como no caso do ópio.
[Paulo Emilio]: (7) Queria saber se dentro das variações do Trichocereus – que agora recentemente sofreu uma mudança no nome – se o pachanoi tem maior concentração de alcalóides? Li em vários lugares que o peruvianus teria dez vezes mais concentração de mescalina, chegaria quase ao nível do peiote. Eu queria saber se isso é verdade mesmo.
[Anthony Henman]: Isso é uma questão bem interessante, porque têm sido feitas muito poucas análises químicas a respeito. Na verdade, acho que as análises existentes foram feitas sobre uma amostra mais ou menos pequena de plantas. Todas as variedades têm mostrado um teor mais ou menos similar de 1-1.2% da matéria verde. Agora, existem variações – essa informação de que o peruvianus tinha dez vezes mais mescalina foi obtida a partir de uma amostra analisada por Alexander Shulgin. Como ele era uma pessoa muito conhecida no meio, publicou. Mas precisamos lembrar que ele fez uma análise de uma planta. Pode ter sido uma planta excepcional. No Peru, tenho usado tanto o pachanoi como o peruvianus e o bridgesii, que é de La Paz, e não vejo muita diferença, na verdade. Talvez o de La Paz seja um pouco mais forte por peso, porque é mais estreito. Quando você corta o San Pedro, tem no meio tipo um círculo, que são as fibras, e a parte do meio, que é bem branca. A mescalina está essencialmente logo debaixo da pele, na parte que é mais verde. As pessoas que têm acesso fácil ao San Pedro jogam fora a parte do meio – só usam mesmo as partes laterais, e o centro jogam fora. O centro ainda contém um pouco de mescalina, mas eles jogam fora e usam só essa parte que está debaixo da pele, a parte que está verde. E é aí que está mais concentrado. Agora, como o bridgesii, essa variedade de La Paz, é uma planta mais estreitinha, a parte verde representa um pouco a mais do volume total da planta. Isso pode fazer então com que a bridgesii tenha, por peso, um pouco mais de mescalina que uma peruvianus, que é normalmente mais grossa. É mais ou menos por aí, não dá para saber realmente a não ser que se faça uma coleta e uma análise. E estou fazendo, tenho coletado plantas de muitos lugares diferentes. Mas não tenho laboratório para analisar, então estou analisando, como se diz em espanhol, ‘en la torre’ (na cabeça). [risos]
[Alexandre Varella]: O xamanismo ancestral, pré-colombiano, como você disse, está vinculado à transformação em animais. Entendo isto como um sentimento ou uma percepção, não como transformação real, como o mito do lobisomem, por exemplo. Mas qual a motivação, qual o objetivo dessa “transformação”? O simples objetivo de perceber a realidade numa outra perspectiva? Porque existem alguns trabalhos antropológicos que colocam essa questão como uma ação do xamã como guerreiro, uma guerra não só espiritual, mas de fato contra outras pessoas. Isto esta presente até na noção de bruxaria, “Eu sou um xamã, me transformo num jaguar”, justamente para combater um inimigo. Gostaria de saber qual sua opinião a respeito deste tema no xamanismo.
[Anthony Henman]: Acho que a transformação num ponto de vista de uma outra espécie tem muita importância sim dentro de um contexto geral do ‘perspectivismo’, de entender melhor o cosmos, de poder perceber o mundo tal como visto por outras espécies. Isso tem uma importância fundamental. Mas fora isso, têm muitas utilidades que são determinadas por cada cultura. Em alguns casos, como você acabou de dizer, estão voltadas para a bruxaria – Reichel-Dolmatoff fala muito sobre isto. Estive entre esses grupos que falam a língua Tucano. Mas não é só isto. Também para os Tucano, a transformação tem uma função de chegar aos mestres que controlam a caça, a pesca etc. É como uma negociação com os espíritos que controlam os animais, os peixes, as espécies que você vai depois comer. Então, nesse sentido, transformar-se em animal é poder chegar aos lugares onde você vai poder negociar com certos personagens. Por exemplo, tem uma figura chamada Wai-Maxê, que vive debaixo de cachoeiras. Você como homem não consegue entrar debaixo de cachoeiras, você não pode entrar nadando como homem. Então você tem que entrar sendo um outro tipo de animal. Tem que se transformar em cobra, em peixe, em pássaro para poder entrar nesse lugar e negociar essas coisas.
[Alexandre Varella] E esta função de flagelar, de trazer doenças?. A bruxaria e o uso tradicional de plantas alucinógenas no mundo indígena... você não acha que existe essa função de causar o mal para as pessoas?
[Anthony] O caso mais clássico aqui no Brasil é dos indígenas do grupo Tupi que praticavam o uso do tabaco engolido, fumaça de tabaco engolido – que foi bem descrito pelos cronistas do século XVI, porque era o que eles viram aqui no litoral. Os xamãs enchiam a boca de fumaça e engoliam, glup!... Não aspiravam para dentro do pulmão, mas engoliam mesmo a fumaça para dentro, para o estômago. Se você fizer isso algumas vezes você se sente um pouco mareado, depois você se sente realmente doente e se você seguir até o fim você desmaia. E o objetivo era esse. Já estive no grupo Tenetehara no Maranhão, que são remanescestes dos Tupi-Guarani, e pesquisei um pouco sobre eles. Eles ainda têm este tipo de prática. O xamã está cantando com o maracá e tem duas moças jovens do lado dele, e ele dança e canta. E vai chupando tabaco e vai levando para o estômago e aí... chega lá... vup! E ele cai no chão. Fica quinze, vinte minutos aí, deitado. Durante esse tempo, no entendimento do grupo, ele pode viajar para fora do corpo, quer dizer, voa... e resolve os problemas necessários assim. Normalmente, fazem isso para curar, para resolver o problema de alguém que está doente, encontrar a causa das doenças; têm que negociar com a causa dessa doença. A doença pode ter ser sido causada por um outro xamã. Pode ser também o espírito de um lugar. A pessoa passou por uma cachoeira e não mostrou o devido respeito ou caçou um animal que não devia ter caçado nessa época, matou uma anta que estava com cria. Tem várias regras assim na caça e, se você transgride essas regras, pode ficar doente. O xamã trata esse tipo de doença através de um vôo fora do corpo. Na tradição Tupi-Guarani eles fazem isto com tabaco, não usam nenhum alucinógeno, só o tabaco.
[Bia Labate]: Fico aqui me perguntando, juntando todas essas questões sobre uso ritual e não ritual, princípio ativo é igual à planta ou não... Você acha que, como estratégia política, o caminho da defesa do uso estritamente religioso das plantas é uma visão que no fundo reifica esses preconceitos e esses grandes dualismos, quer dizer, de um lado você tem uma substância que é milagrosa e de outro você tem uma demoníaca? De um lado você tem ‘o meu Daime’, ‘o meu peiote’, ‘o meu San Pedro’, que são substâncias sagradas, mágicas, intocáveis, e do outro estão as “drogas”. As primeiras seriam “naturalmente boas e sãs” e as segundas “proibidas, fazem mal”. Se você desconstrói algumas categorias que o Estado geralmente usa para classificar as substâncias – mostrando, por exemplo, como alguns usos “tradicionais” não são historicamente, de fato, nada “tradicionais”, então, irônica e dolorosamente, você pode acabar vendo o seu discurso apropriado para fins opostos àqueles que você almeja – como, por exemplo, a proibição de uma certa substância. Bom, sei que este tipo de dilema não é exclusivo do mundo das drogas. Enfim, você acha que do ponto de vista político seria inteligente e legítimo fazer esse tipo de discurso que enfatiza – e quase engessa – os usos “tradicionais” e “sagrados” considerando que você não vai mesmo, num primeiro momento, conseguir a legalização de todas as substâncias, ou você acha que este tipo de defesa, paradoxalmente, pode acabar produzindo um efeito negativo maior ainda sobre as demais substâncias, que ficariam cada vez mais marginalizadas em oposição às legalizadas?
[Anthony Henman]: Bom, não acho que é possível separar assim as substâncias. Todo mundo quer fazer isso, quer dizer, os usuários de coca falam: ‘coca está bom, mas as outras pessoas usam drogas’. Com usuários do daime é a mesma coisa, e com os maconheiros também. Não, isso não tem futuro. Dizer ‘o meu está bom e o resto é ruim’, isso é etnocentrismo básico. Não tem cabimento. Agora, a questão de preparações... Seria favorável a uma postura política que diria que todas as plantas crescem naturalmente e não podem ser reprimidas. Não dá para proibir uma planta. De repente, sobre o extrato de uma planta você pode ter algum tipo de controle, assim como você tem controle sobre produtos industriais e químicos e farmacêuticos. Como existe controle de qualidade, controle de dose, controle de acesso, esse tipo de coisa acho normal.
Agora, como fazer isto – se através de uma estrutura legal, administrativa, ou se através de um contexto adequado, onde essas coisas são controladas através de regras e padrões culturais, tenderia mais para o segundo tipo de modelo. Acho que os controles informais do tipo cultural são mais eficientes do que os controles formais, legais. Mas isso é um argumento que não tem fim, como se vê no caso atual de uma substância legal, o álcool.
A discussão, no fundo, não é uma discussão sobre se a maconha é melhor que a ayahuasca, mais ou menos sagrada, mais tradicional ou mais recente, ou se o San Pedro é menos daninho que a folha de coca. Não é nada disso. A discussão é sobre a proibição. E se a proibição é uma política adequada. E aí não interessa sobre qual substância você está falando, ou do valor de cada uma delas. Você está falando da proibição. A proibição é uma política pública boa para tratar esse tipo de problema? E a resposta é: “não”. É muito claramente: não.
Acho que efetivamente todo mundo devia ser contra a proibição. Porque a proibição produz muito mais problema do que qualquer uma dessas substâncias em si! Os problemas, como falou nosso amigo aí [Anthony Papa], de dois milhões de pessoas na cadeia nos Estados Unidos. As cadeias da América Latina inteira estão cheias de supostos traficantes. Um absurdo, uma situação insustentável. Não só no sistema penitenciário, mas também no âmbito econômico, no contexto social e político, as distorções produzidas pela proibição são infinitas. E isso devia ser entendido pelos daimistas, pelos maconheiros, pelos cocaleros, enfim, pelas pessoas que usam qualquer tipo de substância. E, inclusive, também, pelas pessoas que não usam nenhuma substância. Porque é óbvio que a proibição está gerando uma série de contradições e problemas que não existiriam caso a própria proibição não existisse.
[Bia Labate]: Obrigada Anthony.
(Aplausos).
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Notas:
(1) Anthony Henman (antonil70@hotmail.com) nasceu em São Paulo, em 1949, de pai inglês e mãe argentina. Formou-se e fez Mestrado em Antropologia na Universidade de Cambridge, em 1975. Realizou pesquisa de campo sobre o uso tradicional da folha de coca entre os indígenas Paez, publicada em 1978 em Londres com o titulo Mama Coca. Foi professor de antropologia na Universidade del Cauca, Popayán, Colômbia, e no IFCH-UNICAMP. Atuou como pesquisador e consultor sobre substâncias psicoativas no Conselho Estadual de Entorpecentes (CONEN-SP), no Parlamento Europeu, na Organização Mundial da Saúde, no Observatoire Géopolitique des Drogues (Paris), e no programa de prevenção da AIDS da Secretaria de Saúde do Estado de Nova York. Atualmente se dedica a uma pesquisa sobre as plantas maestras no Peru, especialmente a folha de coca, o cactus San Pedro (Echinopsis spp), e a huilca (Anadenanthera colubrina). É colaborador do NEIP - Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (http://www.neip.info/).
A palestra foi transcrita pelo estudioso das religiões ayahuasqueiras brasileiras Rafael Guimarães dos Santos (banisteria@pop.com.br), e editada por Christian Frenopoulo (freno@chasque.net) e Bia Labate (bia_labate@yahoo.com.br), também pesquisadores do tema, e depois submetida à apreciação do autor.
(2) O Alto das Estrelas, fundado em fevereiro de 2005 pela antropóloga Bia Labate, é um instituto privado localizado na Pedra Branca, Caldas (MG), que promove pesquisa antropológica, intercâmbio entre pesquisadores, palestras, congressos e eventos. Também pesquisa o cultivo e o preparo de espécies vegetais. Opõe-se à política proibicionista contra as drogas. Em ocasiões especiais, organiza sessões de vertentes diversas que utilizam plantas sagradas, conduzidas por líderes experientes, procurando estimular um diálogo entre ciência e espiritualidade.
Ver: http://alto-das-estrelas.blogspot.com/
(3) Anthony Papa é um artista e reputado defensor da política anti-proibicionista sobre drogas; é co-fundador do Mothers of the New York Disappeared (Mães de Desaparecidos de Nova York). Juan Gonzalez, do jornal New York Daily News, disse: “Papa é praticamente um Doutor nas Leis Sobre Drogas Rockefeller" (Rockefeller Drug Laws). http://www.mapinc.org/drugnews/v98/n523/a13.html?1778. Ao usar o conhecimento adquirido em sua experiência e reconhecimento como um artista como veículos de protesta, o sr. Papa trouxe o tema da reforma da guerra contra as drogas para o main stream norte-americano, ao convidar e envolver outras pessoas, como "Russell Simmons", do movimento Hip Hop e a rede http://www.hiphopsummitactionnetwork.org/. Foi entrevistado por vários veículos da mídia escrita e falada, inclusive pelo The New York Times e The Washington Post, pelas National Public Radio, Court TV e C-Span, para citar alguns. Expôs amplamente suas obras e compareceu à programas de auditório distribuídos em todo o território norte-americano. Freqüentemente é convidado para dar palestras em eventos públicos e universidades a respeito de sua arte e sobre temas de justiça criminal (in: http://www.15tolife.com/; tradução de Sonia Labate).
(4) Sobre Mark: “Vim aqui convidado pela Patrícia Aguirre (praticante de Tensegridade). Minha trajetória é ligada a Carlos Castaneda, a esse caminho... temos praticado estes ensinamentos há algum tempo. Há dez anos tive um encontro com o Castaneda e temos trazido para o Brasil algumas pessoas, os aprendizes dele. Tenho estudado várias coisas sobre Cuzco, Machu Pichu, os Maias, os Astecas, Hindus, Chineses, Egípcios etc. E agora sou um novo tradutor...”.
(5) Sobre Henrique Carneiro: “Sou historiador, professor da USP, e o meu tema de estudo tanto no mestrado como no doutorado foi a história das drogas. É um tema que me interessa desde a juventude. Com quatorze anos saí para viajar pela América, tomei uma dose de ácido em Machu Picchu.... Voltando, fui presidente da União dos Estudantes Secundaristas na época do final da Ditadura, e desde então eu me engajei no movimento pela descriminalização das drogas em geral”. Para informações sobre Henrique Carneiro, ver: http://www.neip.info/
(6) Assistente social, participa de um grupo hoasqueiro localizado na cidade de São Paulo, o qual segue os ensinamentos do Mestre Gabriel José da Costa.