O uso da ayahuasca no Brasil e os pajés brasileiros
Comunicação feita no dia 19 de março de 2005, na mesa redonda: “O uso da ayahuasca no Brasil: vertentes e experiências”. Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo, organização Léo Artése/ Associação Lua Cheia – Pax, São Paulo, 13 a 20 de março de 2005. (**)
Quero lembrar que na mesa redonda sobre os “Xamanismos”, que aconteceu na segunda-feira (***), foi levantada uma questão importante a respeito do momento atual com a seguinte pergunta: – “como vocês índios estão vendo as crianças índias morrendo no Mato Grosso?”.
Uma das respostas dada foi: – “A tribo ficou sem pajés”. Entendamos esta resposta: quando desaparecem os pajés, a tribo perde a sua alma, a sua identidade, e entra num processo de extinção.
Sabendo disso o jovem estudante de pajelança Fabiano (****), na sua resposta, afirmou: “Os Huni-Kuin continuam formando mais e mais pajés”. Para interferir, ajudar e reverter neste processo de desaparecimento das culturas ancestrais
Um pequeno momento da mesa redonda que revela a dimensão histórica e geográfica do problema dos índios no Brasil.
Cabe neste ponto uma reflexão: o processo de desaparecimento dos pajés e dos povos ancestrais continua em andamento nas Américas. Enquanto os Huni-Kuin e os seus pajés travam uma luta de resistência, nós os ocidentais, imigrantes, invasores, continuamos acuando a floresta e seus povos originais.
Os mecanismos econômicos e políticos deste processo estão amplamente denunciados e esclarecidos. Mas falta alguma coisa para mudar efetivamente a nossa atitude. Talvez porque falte entendermos o mecanismo inconsciente que continuamos repetindo, o que nos impede de mudarmos o rumo das coisas.
Roberto Gambini, no seu livro Espelho Índio, a formação da alma brasileira (Axis Mundi/ Terceiro Nome, 2000) fez uma análise junguiana da nossa história. E apontou os seguintes mecanismos mentais que se arraigaram na nossa cultura: descobrimos, apoderamos, usufruímos, e lhe demos uma nova roupagem cultural. Assim foi com o pau-brasil, com as mulheres índias, com o ouro, a terra, borracha... e talvez com as plantas do poder. Descobrimos, apoderamos, retiramos as principais técnicas de nosso interesse, usufruímos, e lhe cobrimos com a cultura capitalista, cristã e messiânica.
Este processo de “saque” da riqueza desta terra criou na nossa cultura o seguinte mecanismo mental, que se tornou cultural: a dissociação, negação e projeção. Dissociamos da coisa que queremos usufruir, a sua matéria e as técnicas de nosso interesse. Negamos a sua tradição, história e espiritualidade original. E, colocamos a nossa roupagem, a nossa cultura e história. Projetamos, isto é, sobrepomos a nossa alma sobre a do outro.
Por outro lado, a utilização da ayahuasca (Daime), na extensão do uso de drogas diversas dentro do consumismo jovem, vem abrindo uma possibilidade destes jovens urbanos tomarem contato com o campo metafísico, campo espiritual ou a dimensão da outra realidade. Neste campo os jovens se projetam. Ele se obriga a separar a verdadeira miração da miração projetada. Conforme diz Fabiano: “a ayahuasca é uma planta do poder: do poder para ver as coisas verdadeiras. Do poder para se conectar [com outra dimensão – com seres espirituais]”.
Por meio deste contato metafísico, a ayahuasca favorece a multiplicação “daqueles que se conectaram com o mundo da verdade", também nos centros urbanos. Se no mundo ocidental este contato, denominado de re-ligare, era de exclusividade dos sacerdotes, padres, budas e xamãs, na pajelança da ayahuasca, todos têm a oportunidade de se ligar ao metafísico.
Esta oportunidade de se conectar por meio do chá até agora veio sendo dada pelos chamados “xamãs urbanos” de influência daimista e udevista (adeptos da União do Vegetal). Estes, conforme sabemos da sua história, tiveram os seus líderes formados na época do ciclo da borracha (1890~1940), época esta em que justamente os mecanismos apontados pelo Gambini foram intensamente exercidos: descoberta, apropriação, usurpação e legitimação segundo seus conteúdos culturais. De tal maneira que a tradição indígena foi negada, e colocada uma outra roupagem. A dos hinários com conteúdos de influência cristã, com rituais e hierarquias característicos do universo ocidental. Mas muitos bebedores atuais da ayahuasca sentem-se atraídos pelos pajés originais da floresta. Isto porque o chá separado da tradição original se revela incompleto.
Na cidade há muitas mentiras. A vida na floresta não permite mentiras. Tem que se conectar continuamente com a verdade. Por isso, na floresta se torna possível a formação dos homens com a verdade, dos Huni-Kuin. Na cidade, mesmo bebendo ayahuasca, a pessoa pode errar o caminho por causa das palavras que não falam a verdade. Que não se comunicam com a jibóia. “O uso da ayahuasca sem o diálogo com a jibóia resulta em chamar a força, chamar a força.... aí a força começa a circular, a circular.. e A força da jibóia se enrola na pessoa... sufoca a pessoa...”, diz Fabiano.
Quero citar a reflexão que faz o Francisco de Assis Morais da Costa na sua tese de mestrado em comunicações, Imagem e Semelhança - estudo sobre o pensamento vitalista na teoria da imagem. Uma exploração da dimensão simbólica e pré-discursiva das imagens (UNB, 2000): “Existe uma dimensão pré-discursiva das imagens. A percepção pura, anterior à projeção de qualquer representação discursiva. Estas imagens as quais chamaremos de proto-imagens (ou imagens puras), são o grupamento e combinações das imagens percebidas por cada célula individualmente, depositadas na memória de modo espaço-temporal”.
Analisa ele que a percepção destas proto-imagens, inicialmente percebidas como figuras geométricas arquitetônicas, levam a uma viagem pelo universo das imagens guardadas no cérebro. Estas viagens e esta percepção podem favorecer a integração com o campo vibracional do universo, sentida como a revelação da Grande Verdade. E um contato com a vibração da terra, das plantas, do ar, da água, dos espíritos ancestrais... sentido por muitos como a “grande revelação”.
O que a ayahuasca faz não seria o perceber essas proto-imagens? E conseqüentemente entrar em contato com as vibrações da terra, das plantas da água, da floresta e do universo?
Mas… E o hinário índio? O mantra ou ícaro nativo?
Segundo os Huni-Kuin, a miração e as revelações são conduzidas pelos cantos sagrados ensinados pela Jibóia. Apenas o seu idioma e os seus mantras são os meios para se comunicar com a força da jibóia, e pedir as suas orientações. Quando o pajé da floresta canta o seu mantra, a miração vem com toda a força. Para o jovem estudante de pajelança Leopardo Yawabané (*****), “Não somos nós que vamos atrás da Jibóia. É ela que nos pega e engole... E aí a gente vai para o mundo das revelações...”.
Orientados pelos Huni-Kuin que se dispuseram a intervir na cidade, abre-se a possibilidade de jovens e adultos urbanos se iniciarem também no cerimonial de ayahuasca tradicional. E, quem sabe, formar uma nova geração de cidadãos urbanos conectados com a verdadeira alma ancestral brasileira.
A minha experiência vivida na aldeia Chico-Curumin no Alto Jordão-Acre, onde os cantos ou mantras foram pronunciados no idioma Hãtxa Kuî (língua verdadeira) sob comando do pajé Isaías Ibã, me conduziram para uma viagem fantástica e reveladora. O que me levou a elaborar este texto e realizar esta comunicação.
Na floresta amazônica são contadas atualmente cerca de setenta e duas etnias que realizam rituais e pajelança com a ayahuasca. Muitas delas na Amazônia brasileira. No Amazonas, Rondônia, Roraima, Acre, Mato Grosso. Cada qual tem a sua própria pajelança, seu idioma, tradição e história.
É tempo de reconhecer os seus feitos e agradecê-los. Pedir licença para usarmos a sua planta sagrada. Aprender com ela, e pedir orientações dos pajés tradicionais.
Deste modo, mudando a nossa atitude, de descobridores e usurpadores, para reconhecedores e respeitadores, certamente reverteremos a tendência da perda dos nossos índios, da nossa floresta, da nossa história. E a partir deste reconhecimento, resgataremos aquela que talvez é a mais antiga alma ancestral da terra. A alma daqueles que habitam este lugar há mais de trinta mil anos.
Viva a ayahuasca.
Viva os pajés.
Viva o povo Huni-Kuin.
Viva os Ashaninka, Manshineri, Jawanawá, Katukina, Apurinã, Xananawá, Kulina e Jaminawá (*****).
Obrigado.
(*) Acupuntor da escola japonesa. Vem participando de sessões de nishi-pae (ayahuasca) com Leopardo Sales Yawabané Huni-Kuin (Kaxinawá) há um ano e oito meses, em São Paulo.
yoshiodo@terra.com.br
(**) A mesa redonda foi idealizada e organizada pela antropóloga Bia Labate, que prestou consultoria ao Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo. Foi composta por:
1 - Bia Labate – coordenadora e debatedora
2 - Débora Carvalho: O ritual daimista no Alto Santo e suas atualizações contemporâneas
Professora universitária e dirigente feminina do Centro de Iluminação Cristão Luz Universal de Minas Gerais, em Santa Luzia (MG).
3 - Walter Dias Jr: Céu do Mapiá: uma comunidade planetária ou uma Babel da Nova Era?
Mestre em Antropologia Social, professor universitário e dirigente da Igreja do Santo Daime Céu do Vale, em Pindamonhangaba (SP).
4 - Lucia Gentil: O uso da Ayahuasca no Centro Espírita Beneficente União do Vegetal
Antropóloga, geógrafa e Conselheira do Núcleo Lupunamanta, do Centro Espírita Beneficiente União do Vegetal, em Campinas (SP).
5 - Leopardo Sales Yawabané Huni-Kuin (Kawinawá): A força da jibóia. A tradição Huni-Kuin do Nishi-pae (ayahuasca)
Estudante para ser tornar pajé; lidera cerimônias de nishi-pae (ayahuasca) em São Paulo. É representante do povo Huni-Kuin do Rio Jordão, e vice-presidente do Instituto das Tradições Indígenas (IDETI).
6 - Yoshihiro Odo: O uso da ayahuasca no Brasil e os pajés brasileiros
Acupuntor da escola japonesa. Vem participando de sessões de nishi-pae (ayahuasca) com Leopardo Sales Yawabané Huni-Kuin (Kaxinawá) há um ano e oito meses, em São Paulo.
7- Elza Carolina Piacentini: A hoasca e o autoconhecimento: uma abordagem holística
Terapeuta transpessoal, dirigente do espaço Sollua e Mestre Dirigente do grupo hoasqueiro Luz do Vegetal, em Araçariguama (SP).
8 - Sthan Xanniã: Cerimônia da Bebida Sagrada
Mestre Xamã e terapeuta, lidera cerimônias de plantas sagradas, tenda do suor, busca da visão, danças de cura e canções de poder. É dirigente do espaço Filhos da Terra. Núcleo de Estudos e Terapia, em São Paulo (SP).
Cada representante cantou um canto da sua tradição, a exceção de Lucia Gentil (União do Vegetal), que afirmou que “na UDV não trazemos [entoamos] as chamadas [cânticos inspirados pela ayahuasca] fora do salão do vegetal [sessões com a hoasca]”. Outros convidados da platéia fizeram cantos, como Vera Fróes (Autora de História do Povo Juramidam, Suframa, 1983, e Madrinha do Luz da Metrópole, linha daimista do Padrinho Sebastião – Teresópolis, RJ) e Guilherme Gomes de Andrade (corpo instrutivo da Associação Beneficente Luz do Vegetal, liderada por Wilson Gonzaga - São Paulo, SP).
(***) A mesa redonda “Xamanismo, xamanismo urbano, xamanismo universal, xamanismo crístico, neoxamanismo: afinal o que é isto?” ocorreu dia 14 de março de 2005 no Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo, organização Léo Artése/ Associação Lua Cheia – Pax, São Paulo, 13 a 20 de março de 2005. A mesa foi idealizada e organizada pela antropóloga Bia Labate, que prestou consultoria ao Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo. Pretendia discutir os seguintes temas:
- Como definir o “xamanismo”?
- Qual seria o melhor termo para classificar as práticas contemporâneas?
- Quais são critérios que permitem classificar quais atividades são ou não “xamânicas”?
- Quais são as fronteiras e limites entre o xamanismo “tradicional” e o “contemporâneo”?
- Como lideranças ou xamãs indígenas vêem os xamãs brancos?
- Como os xamãs urbanos compreendem o discurso acadêmico que critica o “neoxamanismo”?
- Como separar “verdadeiros” e “falsos” xamãs?
- Que princípios éticos norteiam ou deveriam nortear as práticas xamânicas?
Foi composta por:
1- Léo Artése (Céu da Lua Cheia/ Vôo da Águia): coordenador
2 - Carminha Levy (Paz Géia): A universalidade e a expansão do xamanismo
3 - Stan Xanniã (Filhos da Terra) - Nativo ou nathus? O saber nativo
4 - Cyro Leãoo (Filhos da Terra): O xamã urbano e o retorno ao sagrado
5 - Clêudio Bueno (Pax): O xamanismo do século XXI
6 - Tatiana Menkaiká (Comunidad Tawantisuyu/ Terra Mística)- Xamanismo e espiritualidade nativa (presença virtual – texto lido por Bia Labate)
7 - Fabiano Maia Sales Yawabané Huni-Kuin (estudante da pajelança Kaxinawá): Huni Mukaiá - Os pajés Huni-Kuin
8 – Wiannã (curador Kariri Xocó/ Filhos da Terra): Existem falsos xamãs?
(****) Fabiano Maia Sales Yawabané Huni-Kuin participou da mesa redonda de 14/03/2005.
Nasceu em 1986. Filho do líder Kaxinawá e atual vice-prefeito do Município de Jordão Siã Huni-Kuin. Aos cinco anos teve iniciação em Ayahuasca com SHANNÊIBU Sueiro Huni-Kuin. Aos quinze anos passou pelo rito de passagem para se tornar liderança juvenil. Atualmente reside em Rio Branco onde há três anos representa o povo Kaxinawá e organiza o nishi-pae (ayahuasca).
kaxinawabane@bol.com.br
(*****) Leopardo Sales Yawabané Huni-Kuin, presente também nesta mesa redonda.
Nascido em 1983 na Aldeia Belo Monte – Reserva Kaxinawá do Rio Jordão. Filho de José Osair Sales Siã Huni-Kuin e Maria Nazeli Maspã. Estudante para ser tornar pajé; lidera cerimônias de nishi-pae (ayahuasca) em São Paulo. É representante do povo Huni-Kuin do Rio Jordão, e vice-presidente do Instituto das Tradições Indígenas (IDETI).
leopardokaxinawa@hotmail.com
http://ecoviagem.uol.com.br/noticias/social/indios-do-brasil/instituto-de-desenvolvimento-das-tradicoes-indigenas-ideti--6189.asp
(******) Povos que utilizam a ayahuasca, que mantêm estreito contato com os Huni-Kuin.